Midiatização e o entendimento desonerado


Mediatization and unencumbered understanding


Mediatización y comprensión desobligada


DOI: https://doi.org/10.18861/ic.2019.14.2.2915


TIAGO QUIROGA

tagorj@terra.com.br - Universidade de Brasília, Brasil.

ORCID:  https://orcid.org/0000-0001-9095-1034


Fecha de recepción: 12 de septiembre de 2019

Fecha de aceptación: 16 de noviembre de 2019


RESUMO

Desde há muito, como forma política, o conhecimento vincula-se às atividades da polis. Na história do Ocidente, desde Sócrates e Platão à fundação moderna do espaço público, ele se configura resposta constante às tentativas de equilíbrio da vida comunitária. Em sua modalidade contemporânea, tem atendido aos imperativos da chamada sociedade da informação, ocasião em que se depara com novas contingências −entre elas, talvez uma das mais significativas, a progressiva desoneração do entendimento humano quando das lógicas avaliativas que envolvem sua produção. Cada vez mais submetida a um tipo de racionalidade contábil, a produção do conhecimento é drenada pelos dispositivos de inteligência artificial, que respondem pela produção enunciativa da mensuração de resultados. Em suma, ao privilegiar o incremento da comutação de dados e seus respectivos mecanismos internos de inteligibilidade, as lógicas avaliativas promovem a desoneração do entendimento como expressão política, cuja aferição de valor expressaria as especificidades de cada campo científico. Como hipótese de trabalho, propõe-se o retraimento da imanência do humano (Sodré, 2014) na constituição dos saberes contemporâneos.

PALAVRAS-CHAVE: epistemologia, tempo, inteligibilidade.


ABSTRACT

For a long time, as a political form, knowledge has bound itself to polis’ activities. In western history, from Socrates and Plato to the foundation of the modern public arena, it has been a constant answer to the attempts for balance in community life. In its contemporary form, knowledge has attended the imperatives of the so-called information society, occasion in which it encounters new contingencies – among them, maybe one of the most significant, is the progressive unencumbering of human understanding with the logical appraisals that involve its production. Increasingly submitted to a type of accounting rationale, production of knowledge is drained by artificial intelligence devices, which provide for the declared production of measured results. In summary, in favoring the increase of data commutation and its respective internal intelligibility mechanisms, the appraisal logic promotes the unencumbering of understanding as political expression, which assessment of value would express the specifics of each scientific field. As a working hypothesis, a retraction of the human immanence (Sodré, 2014) is proposed in the constitution of contemporary human knowledge.

KEYWORDS: epistemology, time, intelligibility.


RESUMEN

Desde hace mucho tiempo, el conocimiento, como forma política, se ha relacionado con las actividades de la polis. En la historia de Occidente, desde Sócrates y Platón hasta los cimientos modernos del espacio público, es una respuesta constante a los intentos de equilibrar la vida comunitaria. En su modalidad contemporánea, ha cumplido los imperativos de la llamada sociedad de la información, y hoy se enfrenta a nuevas contingencias entre ellas, quizás una de las más significativas, el desencanto progresivo del entendimiento humano con las lógicas evaluativas que involucran la producción de conocimiento. Cada vez más sometida a un tipo de racionalidad contable, la producción de conocimiento es drenada por dispositivos de inteligencia artificial. En resumen, al privilegiar el incremento de la conmutación de datos y sus respectivos mecanismos internos de inteligibilidad, las lógicas evaluativas promueven la exención de la comprensión como una expresión política, cuya medición del valor expresaría las especificidades de cada campo científico. Como hipótesis de trabajo, se propone reflexionar sobre la inmanencia de lo humano (Sodré, 2014) en la constitución del conocimiento contemporáneo.

PALABRAS CLAVE: epistemología, tiempo, inteligibilidad.



  1. INTRODUÇÃO

Em reflexão de visada epistemológica, Muniz Sodré (2014) situa o diálogo do conhecimento com a polis como a grande diferença entre a produção teórica oriunda de especialistas, na maioria das vezes guiada por disciplinas isoladas, e aqueles ditos pensadores que se movem a partir da “gênese imaginativa com uma base ética e política” (2014, p. 88). Para o autor, nas ocasiões mais criativas da filosofia “sempre se fez presente, de modo explícito ou implícito, a problemática platônica da relação entre a sabedoria individual e o Bem (to agathon) da polis” (Ibíd. p. 89). A passagem situa a centralidade da vida na polis como imprescindível à atividade epistemológica. De fato, fora desse diálogo, grande é a possibilidade de que a atividade reflexiva permaneça circunscrita à “pequenas descrições funcionais, alimentadas pela obrigatória performance universitária” (Ibíd. p. 87).

Nos marcos, então, do presente pressuposto, o texto que ora se inicia pretende se desenvolver. Precisamente entre os paradigmas lógico e histórico, procura-se, aqui, dar continuidade a um conjunto de reflexões que temos desenvolvido nos últimos anos (Quiroga, 2013; 2016; 2019), tendo como objeto central as relações entre a midiatização, como atual forma histórica da comunicação, e a constituição desta recente área do conhecimento, a comunicação social. O argumento inicial é o de que, embora já tivéssemos elementos históricos, anteriores ao advento da midiatização, que justificassem o debate acerca de uma ciência da comunicação, apenas na segunda metade do século passado, muito especialmente em coincidência com os embriões do sistema digital, quando a comunicação começa a desenhar sua dimensão organizativa (Sodré, 2014), é que tal discussão parece ganhar mais visibilidade1.

Nossa hipótese, todavia, é a de que, este mesmo acontecimento, a midiatização, que alça a comunicação à condição de limiar histórico e que de certa forma renova os interesses em torno de sua constituição como campo de estudos, é exatamente o que dilui as tentativas de sua compreensão a partir do ideal de autonomia discursiva frente aos chamados fatos do mundo (Bourdieu, 2004a). Dito de outro modo, o processo histórico que a consolida como um componente essencial da organização da vida contemporânea, engendrando novas práticas epistemológicas e lógicas de pertencimento, é o mesmo que, enquanto área de conhecimento, a distância dos pressupostos que definem sua autonomia científica.


  1. MIDIATIZAÇÃO, FORMA ORGANIZATIVA DA COMUNICAÇÃO

Constituída sob forte “aproximação” às lógicas do macrocosmo (Bourdieu, 2004a), a comunicação sempre esteve vinculada a um tipo particular de demanda de conhecimento, oriundo do mercado, que terminou por lhe imprimir as marcas do paradigma econômico e tecnológico predominante. Diferente de outras ciências sociais, que tiveram no Estado a fonte de demandas de produção de conhecimento, a área esteve, desde seu surgimento, fortemente orientada “pela reprodução de um saber em sua origem legitimado nas rotinas industriais” (Sodré, 2014, p. 94). Além de situar o espaço da formação como instância de competências práticas, os saberes profissionais trataram de entronizar um tipo de ideologia que não apenas fez com que o princípio de autonomia desse campo passasse despercebido, ou se tornasse irrelevante, mas, sobretudo, autolegitimasse as especialidades profissionais como instâncias de onde adviriam originalidades cognitivas a ser seguidas, muito especialmente, pelos currículos acadêmicos. Daí, em parte, a suposta extinção ou, pelo menos, naturalização em comunicação das diferenças que regem as lógicas da obra, em que podemos incluir as instâncias formativas, e as lógicas que organizam o sistema social, principalmente o campo do trabalho.

Ora, tal caraterística apenas se acentua no atual contexto da midiatização, ocasião em que, dada a capilaridade do digital, a comunicação se constitui dimensão “organizadora de novas formas de relacionamento não apenas dos homens entre si, mas também com as coisas e com a natureza” (Sodré, 2014, p. 141). Adota-se a compreensão de midiatização de Sodré, que a concebe como fenômeno decorrente dos hibridismos mais recentes da comunicação com os regimes de informação. Segundo o autor, como resultado desse hibridismo, tem-se agora o formato da comunicação em que se destaca propriamente sua dimensão organizativa. Para ele, cada vez mais orientado como componente essencial da organização da vida, o hibridismo comunicação-informação produz “os pressupostos do processo de formação de uma nova forma de socializar, de um novo ecossistema existencial em que a comunicação equivale a um modo geral de organização” (Ibíd., p. 14).

Destaca-se nesse caso muito especialmente a centralidade da midiatização como um dos espaços por excelência de constituição da economia contemporânea. De acordo com Sodré: “capitalismo financeiro e comunicação constituem hoje, no mundo globalizado, um par indissolúvel. O capitalismo contemporâneo é ao mesmo tempo financeiro e midiático: financeirização e mídia são as duas faces de uma moeda chamada sociedade avançada” (Ibíd., p. 55). Trata-se da midiatização como materialidade estrutural das economias pós-industriais que, pelo menos desde a década de 1970, passam a ser determinadas fundamentalmente pela substituição da “lógica da produção pela da circulação (...) da lógica do trabalho pela da comunicação” (Chaui, 2014, p. 92). Em ambas, a novidade estaria na visibilidade e na circulação como dispositivos fundantes do campo da produção, ou seja, da comunicação como “ideologia mobilizadora de um novo tipo de força de trabalho, correspondente à etapa presente de produção das mercadorias por comando global” (Ibíd. p. 85).

Entre os resultados do processo, tem-se, então, a exportação do discurso organizacional para distintas instituições, sendo uma de suas consequências mais expressivas sua uniformização discursiva. Diante do novo modelo gerencialista, as instituições já não atendem a vocações originárias, mas a lógicas de autorreprodução organizacional que visam ao aperfeiçoamento de si mesmas. Nos referimos à entronização do hibridismo comunicação-informação como modo constitutivo da eficácia das organizações, em que o ideal de transparência já não reconhece qualquer alteridade institucional que não as da competitividade e da rentabilidade. Por meio das lógicas de visibilidade e da circulação, como novos modos de reprodução do capital, a midiatização vai incrementando a “generalização da concorrência como norma de conduta [universal] e da empresa como modelo de subjetivação” (Dardot & Laval, 2016, p. 17).

Naturalmente, os impactos da mudança são variados. Em termos acadêmicos, não são menores. Segundo Chauí (2014): “se as artes já haviam sido devoradas pela indústria cultural, agora são as ciências que se encontram inteiramente absorvidas pela lógica de mercado, e, com elas, todo o sistema de educação formal” (2014, p. 178). Isso porque, argumenta a autora, a mudança não se restringe a formalismos institucionais, mas ao que a filósofa destaca como “absorção dos processos simbólicos pelo econômico” (Ibíd., p. 176). Em sua nova condição, os programas de pós-graduação aderem ao formato discursivo-gerencial da informação, que condiciona sua qualidade tanto a resultados métrico-quantitativos, com base no produtivismo universal, quanto à formação de discentes que, além de qualquer outro conhecimento, sejam capazes de planejar, formular estratégias e gerir projetos. O modelo, afirmam Feldman e Sandoval (2018) advém da tríade neoliberalismo-métrica-conhecimento e implica uma “ideologia meritocrática de realização individual que enquadra o sucesso e o fracasso como conquistas puramente pessoais, o que encoraja um espírito competitivo e uma crônica autocrítica” (2018, p. 214).

Tendo em vista então o enquadramento do presente artigo, gostaríamos de observar como toda essa movimentação, proveniente do novo hibridismo em torno do fenômeno comunicacional, tem impacto direto na discussão que envolve a autonomia do campo da comunicação.


  1. PRESSUPOSTOS EPISTEMOLÓGICOS

Entendido como candidato a “espaço relativamente autônomo” (Bourdieu, 2004b, p. 20), o campo da comunicação, como boa parte daqueles que integram os campos científicos, poderia ser definido como um microcosmo, portador de leis, estruturas e funcionamentos específicos que, ao lhe permitir filtrar e traduzir, a seu modo, as diversas influências do espaço social global, acabariam por lhe garantir também determinado nível de autonomia em relação àquele último. Como boa parte dos campos científicos, a comunicação também se encontra fundada na centralidade de dois tipos de capital: o primeiro, capital intelectual, dito puro, que se refere à competência técnica, ao acúmulo do conhecimento e ao reconhecimento, na forma de prestígio pessoal, junto aos pares; e o segundo, capital político ou temporal, que diz respeito aos ofícios administrativos, à ocupação de cargos institucionais em trabalhos e projetos científicos, tais como chefias de departamentos, participação em comissões de avaliação, coordenação de laboratórios, etc. (Bourdieu, 2004b).

Embora permeadas de distinções, as duas modalidades de capital são efetivamente aquelas que fundam os campos de um modo geral. A contextualização parece importante porque nos lembra que, mesmo suscetíveis às influências do macrocosmo, os campos são o resultado do acúmulo e da distribuição desses dois tipos específicos de capital que, na realidade, determinam a capacidade de “retraduzir ou refratar” (Bourdieu, 2004a, p. 22) as influências da atmosfera social, dela se afastando ou até se desvinculando por completo, condição pela qual se justifica a ideia de que será mais autônomo o campo com maior capacidade de produzir interpretações originais dos fatos do mundo. Nesse caso, o contrário também vale, isto é, quanto maiores forem as imposições externas ao campo ‒ por exemplo, quando há exagero na ingerência política das atividades específicas‒, menos autônomo ele será, dado que se torna portador de elevados níveis de heteronomia.

Em síntese, da capacidade de refratar e retraduzir, a seu modo, as “intromissões” do mundo social, afastando-se e tornando-se independente de suas influências e oscilações, dependeria a autonomia relativa dos campos de conhecimento. Tais capacidades, no limite, dependem do nível de originalidade das teorias produzidas internamente, isto é, do acúmulo de capital simbólico desenvolvido em cada campo (Bourdieu, 2004b). Essas questões nos interessam diretamente, em especial esta última, porque destaca a importância das teorias como instâncias de conquista de relativa autonomia frente às injunções do espaço social. Em outras palavras, ainda que o capital científico político ou institucional seja imprescindível na compreensão do conceito de campo científico, não estariam propriamente em torno de suas configurações os aspectos que atendem à especificidade e autonomia dos campos de conhecimento. Nesse caso, deveríamos nos ater aos desdobramentos circunscritos ao capital científico puro ou intelectual. Em seu desenvolvimento repousam os atributos que singularizam o campo científico. A ele remonta “a lógica segundo a qual a ciência engendra seus problemas” (Bourdieu, 1983, p. 116) e que responde pela capacidade de “refratar” e traduzir, de modo específico, as influências do mundo social, garantindo-lhe relativa autonomia.

Se consideramos válidos, portanto, os pressupostos apresentados por Bourdieu, bem como se os aplicamos ao caso da comunicação, eles denotam que parte significativa do problema que envolve a autonomia desse campo decorre de sua excessiva “aproximação” às lógicas do macrocosmo (Bourdieu, 2004a). Seja pela via histórica, em que nasce marcado pelas lógicas industriais, seja pela atual conjunção, em que se constitui força produtiva direta de acumulação e reprodução do capital, são saberes e competências práticas, que passam a estar ainda mais alinhados às demandas do sistema produtivo. A conformidade entre as esferas formativas e profissionais em comunicação se intensifica agora, todavia, em função da nova temporalidade da esfera do trabalho. Estruturado em torno dos vetores da visibilidade e da circulação, o campo da produção tem na velocidade seu modo de ser. Trata-se de um juízo puro, sem substância, embora investido de materialidade própria, que não apenas constitui o centro dos atuais investimentos da economia neoliberal, mas também instaura a ausência de duração como pressuposto comum ao funcionamento das organizações. O acontecimento aponta para o protagonismo do tempo real no advento da cultura das interfaces (Virilio, 1997). Mediante sua ampla disseminação é a diferença da duração que se esboroa. Fundamento da lógica da transparência, o tempo real impõe a operacionalização seguida de aceleração de todos os procedimentos do conjunto da sociedade, diluindo “a negatividade do outro e do estranho, ou a resistência do outro, [que] perturba e atrasa a comunicação lisa do igual” (Han 2014b, p. 12). Na lógica da eficácia, portanto, fundada agora na velocidade, as alteridades discursivas são desarticuladas para que possam ser integradas ao regime da aceleração. Rugosas, elas produziriam fricções que atrapalhariam o deslize do capital. Por isso, o apagamento das distâncias que regem os distintos campos sociais, passando eles, sobretudo a educação, a ser regidos majoritariamente pelo princípio da competitividade. Ora, nesse contexto então, não apenas o campo da comunicação, enquanto área de conhecimento, é tragado para o centro das economias pós-industriais, mas, do ponto de vista epistemológico, é sua produção teórica que passa também a estar progressivamente “desprovida da negatividade da atopia” (Han, 2014a, p. 54). Atopos designa aqui a experiência de um outro sem o qual não se pode pensar. Indica a presença de um outro sem lugar, que se subtrai aos nossos desejos de domínio pela linguagem. Como força ascensional, impele a entrar no não percorrido, encaminhando tanto a inquietude do pensar quanto sua resistência (Han, 2014a).

Como já mencionado, as teorias de comunicação, por sua vez, procuram dar conta de objetos cuja temporalidade em nada se assemelha à dos objetos de outras disciplinas. Sua particularidade está em ter de interpretar os acontecimentos em concomitância com sua acelerada instantaneidade. Como afirma Sodré (2014), “as estruturas fixas ou estáveis focalizadas pelas clássicas ciências sociais pouco ou nada têm a ver com a veloz circulação das formas que caracteriza a midiatização” (2014, p. 115). Significa dizer que o risco implicado no trabalho teórico em comunicação é o de que suas incursões reflexivas fiquem coladas na temporalidade dos chamados fatos do mundo (Bourdieu, 2004a). Tendo que acompanhar tais objetos em sua duração própria, elas teriam suas atividades interpretativas subsumidas à velocidade transtemporal do acontecimento midiático (Sodré, 2014). No modo de ser da velocidade, portanto, tais incursões teóricas seriam marcadas pela subsunção das lógicas de duração às da velocidade (Virilio, 1997), em que, plasmadas na performance do hibridismo comunicação-informação, acabariam por reproduzir um certo tipo de descrição tecnológica que reifica (Honneth, 2018) o próprio paradigma que se pretende pensar criticamente. Assim como “telefones celulares, laptops e outros dispositivos de conexão com a internet, (...) [considerados] tecnologias próprias de mediação” (Sodré, 2014, p. 110), elas se caracterizariam como narrativas fundadas agora no cômputo geral dos acontecimentos. Nesse caso, o que desparece do âmbito reflexivo é a exterioridade teórica do acontecimento midiático, ou seja, com a ampliação do alcance da midiatização vai se “perdendo de vista os limites entre o fenômeno e sua conceituação” (Ibíd., p. 87).

Arrastadas pela velocidade, tais atividades passam a viver então do acompanhamento dos eventos da midiatização, como se os mesmos já não pudessem ser pensados. Atadas ao êxtase da conexão (Sodré, 2014), constroem trincheiras ao pensamento abstrato e edificam o reino das necessidades. Sendo assim, se fecham à “negatividade do incalculável (...) inerente ao pensamento” (Han, 2014, p. 55) e por isso têm reduzidas suas competências não apenas de retraduzir, a seu modo, os acontecimentos do macrocosmo, mas também de produzir qualquer originalidade conceitual que as torne independentes em relação a ele (Bourdieu, 2004a). Nesse caso, se enfraqueceria o princípio de autonomia do campo uma vez que, segundo Bourdieu (2004a), ele dependeria do avanço da produção de originalidade de seu capital intelectual puro. Diante do mero acompanhamento do fenômeno midiático a autonomia da área ficaria comprometida porque seria o próprio recuo do tempo −como espaço da duração e, consequentemente, das originalidades discursivas− que desapareceria. Na lógica das interfaces, portanto, em que as distâncias parecem encolher, é a desrealização do estatuto do tempo um dos principais impasses à constituição de autonomia da área.

Obviamente a questão não diz respeito a causa única. Cabe salientar, a própria dificuldade do campo de fazer o debate epistemológico em função de tal proximidade, ou seja, de se reconhecer como parte de uma área de conhecimento específica, portadora de atributos, crenças e regularidades discursivas regidas historicamente pelo princípio de autonomia. Embora tenhamos produção teórica bastante regular, assim como a presença formal da epistemologia em diferentes âmbitos da pesquisa brasileira, observa-se ainda grande dificuldade na “constituição de uma comunidade argumentativa –ou espécie de colégio invisível onde se discutissem problemas no interior de linhas de pesquisa compartilhadas– favorável à integração da área comunicacional” (Sodré, 2014, p. 84). Parte do problema encontra-se atrelada à dispersão e à não convergência em torno de marcos teóricos comuns. Na mesma proporção em que observamos aumento significativo da produção de teorias na área, constatamos também o incremento de sua dispersão cognitiva. Como afirma Craig (2007):

As atuais tendências em teoria da comunicação sugerem um paradoxo. Mesmo que o campo tenha crescido e amadurecido, e que nos últimos anos os pesquisadores em comunicação tenham contribuído mais e melhor para uma teoria original, mesmo assim têm notavelmente aumentado a confusão, a incerteza, a dissenção implícita e, num menor grau, a controvérsia explícita sobre funções, formas e focos apropriados à teoria da comunicação. (2007, p. 81)


  1. ONTOLOGIZAÇÃO MAQUÍNICA

São sintomáticas, portanto, da dificuldade acima mencionada, as recentes defesas em torno da necessidade de definição do que vem a ser comunicação (Sodré, 2014; Marcondes Filho, 2010). Da perspectiva ontológica, os esforços em definir a comunicação parecem retornar como resposta ético-política aos hibridismo comunicação-informação. Nessa linha de raciocínio, afirma Sodré (2014):

A pergunta sobre o que é [a comunicação] não pode ser relegada ao plano dos resquícios conceitualistas da metafísica grega, pois é o necessário ponto de partida para uma orientação existencial frente à hipertrofia de poder da dita comunicação/informação, assim como para uma linha eventual de ação ético-política, no interior do ordenamento democrático. Não é secundária, portanto, a pergunta sobre o que significa realmente comunicação, ainda mais quando se acompanha Wittgenstein na suposição de que toda interrogação de natureza filosófica diz respeito ao significado das palavras. Além disso, dentro de uma visada epistemológica, a interrogação contribui, ao lado do devido esclarecimento ontológico do fenômeno, para que se cogite de um saber positivo, isto é, de uma ciência específica, ainda que não se destine ao confinamento nos parâmetros objetivistas estabelecidos pela episteme dita normal. (2014, p.14).


Diante da inédita ampliação de sua condição organizativa, a mudança aponta para a radicalização da ideia não tão nova de comunicação como sinônimo de transmissão (Sodré, 2014). De acordo com Sodré, a mudança ocorre quando à comunicação em si se sobrepõe a ideia de coisa a ser comunicada (Sodré, 2014), deixando a primeira de ter qualidade própria em torno do comum e passando, progressivamente, a ser entendida em termos de intercâmbio de mensagens, signos ou mercadorias. A rigor, sabe-se que tal acontecimento já havia sido expandido pelos estudos da teoria matemática da comunicação. Nas proposições acerca da comunicação como troca de mensagens, eles assumiriam explicitamente a ideia de comunicação como informação (Weaver, 1978). Hoje, todavia, no âmbito da polis contemporânea, atraída pela noção híbrida de veiculação e velocidade, tal condição se intensifica, não restando outras qualidades à comunicação senão aquelas articuladas às materialidades da aceleração do fluxo, da circulação e computação de dados. Por meio da atual noção de velocidade como inédita divisa de valor, a comunicação se transmutar-se-ia em informação.

A questão, porém, não trata exatamente (e apenas) de uma mudança etérea de ordem cognitiva, mas atrai preocupações de ordem ética, porque diz respeito à percepção dos indivíduos sobre os próprios territórios. Interessado na compreensão das condições que geram as experiências, Virilio (2014) dedica uma vida a pensar certa economia política da velocidade. Para o autor, ela responderia “ao modo pelo qual a experiência individual e coletiva era territorialmente moldada por relações estratégicas de poder” (Crary apud Virilio, 2015, p. 10). Segundo ele, ainda que não fosse exclusiva à modernidade, era preciso pensar a distância-velocidade como nova grandeza primitiva aquém de toda medida tanto de tempo como de lugar. Nesse caso a velocidade seria um dos principais vetores responsáveis por plasmar as cidades aos chamados protocolos telemáticos. Daí as cidades como dispositivos urbanos em que a percepção resultaria mais de uma nova topologia eletrônica e menos propriamente da dimensão geográfica (Virilio, 2014). Virilio insiste no papel do tempo e muito especialmente da velocidade, “nas múltiplas e profundas desvinculações entre a percepção e seus objetos possíveis” (Crary apud Virilio, 2015, p. 10). Para o ensaísta francês, de fato, são inúmeros os exemplos em que, por meio da aceleração dos dispositivos midiáticos, produz-se não apenas uma transformação significativa da duração sensível, mas sobretudo, um tipo de condição política em que os acontecimentos se descolam do tempo vivido (Virilio, 2014).

Tal constatação se constitui verdadeiro ponto de inflexão ao que Sodré denomina um quarto gênero de existência, o bios midiático ou a midiatização, que implicam reconhecer na comunicação uma “nova tecnologia perceptiva e mental” que requalifica as relações do “indivíduo com referências concretas ou com o que se tem convencionado designar como verdade” (Sodré, 2002, p. 27). No descolamento dos acontecimentos do tempo vivido nasce nova ontologia em que “o indivíduo (. . .) não pode senão metamorfosear-se em um transmissor de si próprio” (Türcke, 2010, p. 45). Trata-se agora de um tipo de eclipse em que a radiação pessoal (cada vez mais pálida e residual) é tomada pela irradiação midiática, de ordem etérea, em que o aqui e agora do “aí” do ser, pensado por toda a tradição filosófica, migra ao “aí” do transmissor, que “deve estar situado em em algum lugar, totalmente indiferente, contanto que funcione” (ídem). Dito de outra forma, o estar “aí” de um emissor implica que “esteja na linha: no éter, nas frequências que permitem sua percepção” (ídem). Trata-se, pois, da emergência de um tipo de interioridade definida como dispositivo de armazenamento destinado a alimentar permutas informacionais exiladas de tempo e espaço.

A questão se torna particularmente importante pois aponta para o surgimento de uma “consciência” externa aos sujeitos, em que as plataformas digitais ou os arquivos de dados substituem a memória como narrativa da recordação (Han, 2015). Já não se trata de uma inteligibilidade fundada num “processo dinâmico, vivo, em que diferentes níveis de tempo interferem e influenciam” (2015, p. 76), mas da positividade de um estado de coisas, em que tanto a recuperação do passado como a acessibilidade do futuro podem ser realizados de modo indiferente à vivência do tempo presente. Como afirma Sodré (2014) o acontecimento marca a inscrição do “tempo da existência (...) na causalidade maquinal da eletrônica” (2014, p. 115).

Ora, o resultado pressupõe a estabilização da memória num “presente total que precisamente suprime o instante” (Han, 2014a, p. 23). Nesse caso, pode-se falar da produção de uma exterioridade do tempo que, “simplesmente aditivo, deixa de manter qualquer relação com uma situação” (2014a, p. 23). A questão não é abstrata e pode ser observada no que se tem chamado de ontologização das máquinas (Lafontaine, 2004). Portadoras de inteligibilidade própria, são elas que permitem agora dizer que o tempo passa a estar nas coisas, nos objetos, na informação. Constituídas de temporalidade, elas reúnem o conjunto de enunciados que, doravante, precisa ser alimentado pelo trabalho intelectual humano. Daí a “força dos simulacros (figuras do código) em que já não há nenhuma distinção a fazer entre um original e uma cópia” (Sodré, 2014, p. 82). A rigor, posto que os usos do código, guiados por regimes de programação e eficácia do mercado, antecedem e orientam qualquer desastre do tempo, os “processos de subjetivação e (...) de dessubjetivação parecem tornar-se reciprocamente indiferentes e não dão lugar à recomposição de um novo sujeito, a não ser de forma (...) espectral” (Agamben, 2009, p. 47). Sendo assim, da mesma forma como acontece na psicanálise “[quando] o código recebe o nome de significante e este, por sua vez, precedendo o significado, submete o sujeito” (Sodré, 2014, p. 81), tem-se agora o apriorismo do código que, submetendo a consciência, torna-se “o suporte dos fenômenos ou dos enunciados” (ídem).


  1. O ENTENDIMENTO DESONERADO

A passagem ao contexto em que o código faz as vezes da consciência parece problemática se recordamos que, ao menos em termos modernos, importantes normas práticas da ação foram negociadas livremente, em função do afastamento do elemento transcendente de cunho religioso. De fato, foram muitos os ganhos que resultaram do “discurso imanente à sociedade” (Han, 2015, p. 17) e que, em larga medida, adveio de dimensão política dada na conquista do tempo presente como espaço de um futuro já inscrito na ação humana. O mesmo pode ser dito, pela perspectiva epistemológica, em relação às humanidades, que surgem do próprio “princípio de autodeterminação humana” (Renaut, 2001, p. 11). Todavia, hoje, no contexto de ontologização das máquinas, o que se esvai particularmente da ordem do conhecimento é esse importante princípio político-epistemológico dado na imanência do tempo. Trata-se do evanescimento do princípio de autodeterminação humana como substrato emancipatório das ciências sociais, ou seja, daquilo que as vincula, enquanto tempo vivido, a diferentes projetos de liberdade. Por meio dos regimes de programação, em que o poder forja um futuro predizível e controlável (Han, 2015), o que se atrofia é precisamente a capacidade epistemológica de autodeterminação no tempo presente. Com o avanço dos chamados dispositivos de machine learning desidrata-se a produção do conhecimento não apenas de princípios emancipatórios, mas sobretudo da formulação de políticas de avaliação por parte das comunidades científicas. Por meio do incremento de softwares como dispositivos enunciativos que organizam a aferição de valor, o que se observa é a predominância de modelos de produção e avaliação voltados mais para a narrativa aditiva do número (Han, 2015) e menos para a produção do comum (Sodré, 2014). A novidade advém da consolidação de nova transcendência acrítica, agora de cunho tecnológico, que imprime progressiva desoneração do entendimento humano em relação à produção enunciativa das máquinas inteligentes. A rigor, tais dispositivos já não lidam tanto com instituições, mas com procedimentos de poder, técnicas de governar, as quais, de caráter transversal e sistêmico, atravessam domínios muito diferentes, desde relações sociais mais íntimas até ações governamentais globais. Em suma, os dispositivos de machine learning já não lidam com campos sociais, mas com lógicas normativas que os atravessam e, em suma, são indiferentes a suas especificidades. Nesse contexto, afirma Sodré (2014):


O conhecimento deixa de ser consagrado ou validado pelos pares de uma comunidade do saber: os resultados fragmentários das pesquisas são cotados como ações numa Bolsa de Valores e diretamente indexados por revistas internacionais, publicadas em inglês. Trata-se de uma tendência extensiva às ciências sociais, em que a produção de reflexões ou de ideias é substituída pela produtividade numérica de artigos, contabilizada pela burocracia universitária e agências de fomento. (2014, p. 97)


O problema pode ser observado segundo a ampla disseminação das plataformas digitais no campo do trabalho, que instauram e reconhecem, na nova dimensão organizativa da comunicação, um saber decisivo ao funcionamento das instituições. Nesse caso, passa a predominar a rarefação do traço que então promovia a diferença entre “trabalhadores intelectuais e operadores de máquinas” (Sodré, 2014, p. 100), a saber: o discernimento. Em função da crença na “objetividade técnica atribuída à interatividade” (Ibíd., p. 110) as práticas de reconhecimento se dão menos pela “sensibilidade lúcida [na] apreensão crítica do mundo” (Ibíd., p. 120) e mais pela comutação da informação. Daí a desoneração do entendimento quanto às lógicas avaliativas da produção do conhecimento.

Cada vez mais submetido a um tipo de subjetividade contábil (Dardot & Laval, 2016), o entendimento humano parece se constituir mera continuação dos dispositivos enunciativos maquínicos, responsáveis hoje pelo processo de mensuração de resultado acerca da produção do conhecimento. Em outras palavras, ao privilegiar o incremento da comutação dos dados em detrimento das particularidades históricas e locais da produção epistemológica, as lógicas avaliativas acabam por promover uma progressiva desoneração do entendimento humano como lógica de participação política e aferição de valor que expressa as especificidades de cada campo científico. Fundadas agora na “arte de garantir a eficácia da ação” (Louis Couffigual apud Lafontaine, 2004, p. 26), tais lógicas avaliativas pautam-se por procedimentos de aferição de valor que passam a viver da dificuldade de reconhecer qualquer alteridade externa à comutação de seus mecanismos internos de inteligibilidade. Como afirmou Sodré na aula inaugural do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Mídia (PPGEM) da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), proferida em 9 de outubro de 2019,


No âmbito crescente da midiatização, a comunicação eletrônica converte as tecnologias da informação em dispositivos de machine learning (expressão mais corrente para inteligência artificial) e, por meio da rede, introduz um novo paradigma, com uma estrutura de interconexão invisível, em que tudo é, ao mesmo tempo, conexão e passagem. Para nós, o efeito oligopolístico de rede, produzido por economia, cultura e eletrônica, implica um verdadeiro sequestro da fala comum por algoritmos –portanto, uma substituição do campo semântico consensual por idioletos técnicos irrespondíveis– assim como uma redução a zero do pensamento ponderado. Isso abre caminho para discursos subterrâneos e humanamente incontroláveis, na medida em que os dígitos ampliam a sua capacidade de gerar uma realidade separada, dotada de lógica e “linguagem” próprias. (Som de áudio, s/r)


  1. CONCLUSÃO: SOBRE A IMANÊNCIA DO HUMANO NA REFLEXÃO EPISTEMOLÓGICA

A problemática abordada seria meramente especulativa se não envolvesse as implicações do tempo como agente absoluto de mudança (Koselleck, 2006), bem como seus desdobramentos nas conformações práticas dos saberes modernos, muito especialmente no âmbito de sua dimensão emancipatória. Como se sabe, são saberes fundados numa inteligibilidade compreensiva sob a perspectiva da formação de uma consciência no tempo, isto é, de uma consciência da historicidade do tempo. Nesse caso, sua dimensão emancipatória advém justamente do princípio de autodeterminação dado na imanência do tempo, ou seja, na instauração do tempo presente (Bloch, 2001) ou da atualidade (Foucault, 1984) como espaços de suas inteligibilidades. Trata-se, portanto, do conjunto de conhecimentos que se desdobra da máxima de que a partir de então:


O que ocorre aos homens é o que é produzido pelos próprios homens, mesmo que sujeitos às adversidades e às condições naturais. [Ocasião em que] o movimento da história –condenado ao interminável exercício da criação e da liberdade– é agora de alçada e responsabilidade dos próprios seres humanos, ainda que muitos vejam nesse movimento uma lógica, ou mesmo leis que direcionam a ação humana sem que os próprios homens delas se apercebam. (Barros, 2011, p. 138)


O resultado da operação em que se rompe a imbricação moderna entre interioridade e exterioridade (Lafontaine, 2004), segundo a qual haveria uma inteligibilidade doravante externa aos sujeitos, torna o fenômeno sensível. Ela implica a radicalidade de um sujeito virado para fora (Bateson, 1977), plasmado no presentismo (Hartog, 2019) do digital, em que o conhecimento passa a gravitar em torno da exterioridade do acelerado e ininterrupto fluxo do tempo real. A mudança parece significativa porque implica a retirada daquele princípio emancipatório da ordem do saber que esteve, sobretudo em termos modernos, atrelado à ideia de uma interioridade (Taylor, 1997) forjada na imanência do tempo. Em outras palavras, a nova temporalidade aponta para o desaparecimento do ideal de emancipação (Kant, 1985), o qual, construído sob a égide da experiência de um tempo vinculado à existência, isto é, de um tempo imanente, constitui a base ampla de um conjunto de saberes herdado especialmente do século XIX. Atrelada à ontologia das máquinas, a existência supostamente se desvincula de qualquer vigor emancipatório, fundamental às ciências humanas, encerrando-se na paisagem do “tempo transparente (...) destituído de todo o destino e de todo acontecimento” (Han, 2014b, p. 11). Em suma, como consequência direta do conhecimento atrelado ao fluxo ininterrupto do tempo real, teríamos o retraimento da imanência do humano (Sodré, 2014) nos saberes contemporâneos.

Tal constatação, em larga medida, realça nossa insistência em torno da manutenção do crivo da autonomia (Bourdieu, 2004a) no debate epistemológico. Na realidade, o pressuposto destaca a impossibilidade da ausência da forma humana na produção do conhecimento. A rigor, originalmente vinculada às filosofias da matemática ou da lógica, a própria questão que envolve uma subjetividade externa aos sujeitos diz respeito a um amplo conjunto de tradições em “ciência pura”, cuja tradução dos fatos do mundo produziu determinado acúmulo ao que Bourdieu chama de capital intelectual puro. Por exemplo, o behaviorismo norte-americano (Watson, 1925; Homans, 1999), na segunda metade do século XX, como experiência que germina o hibridismo entre homem e máquina. Ou seja, o que está, de fato, na base da ontologização das máquinas não seria exatamente uma questão maquínica, mas um conjunto de representações (Foucault, 1999) que tem sua grande inspiração na analogia (Wiener, 1968) da “aplicação de raciocínios matemáticos à linguística” (Lafontaine, 2004, p. 90) e, na sequência, às próprias máquinas, sua configuração primordial.

Em outras palavras, a produção da exterioridade do simbólico, em que o “inconsciente passa do estatuto de refúgio psíquico pulsional para o de um lugar vazio unicamente destinado às trocas simbólicas” (Ibíd., p. 93), resulta da produção de um tipo de capital intelectual puro dedicado à fabricação de originalidade na tradução dos fatos do mundo. Todavia, enquanto tradução, ainda que não deseje, ela continua necessariamente vinculada à imanência do humano na ordem do conhecimento (Sodré, 2014). Como toda interpretação que precede a produção dos conceitos, tais traduções implicam abertura à atividade ininterrupta e involuntária do próprio entendimento do mundo, que nos habita antes de qualquer reflexão sobre ele. Ainda que não se reconheçam enquanto tal, são saberes necessariamente forjados no tempo precário, frágil e perecível da própria existência (Dilthey, 2010; Carneiro Leão, 2002). No cômputo geral, portanto, seria preciso problematizar as matrizes teórico-filosóficas desse “sujeito da cognição [que] parte de uma constante, que é o mundo externo e natural” (Sodré, 2014, p. 68) e que, como pura exterioridade, não apenas se deseja esvaziado de qualquer motivação política, mas dissocia produção, avaliação e crenças que orientam a produção de conhecimento.


REFERÊNCIAS

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*Contribución: el 100% del trabajo pertenece al autor.


IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR

Tiago Quiroga. Pós-doutorado (2017-2018), Interdisziplinäre Zentrum für Historische Anthropologie, Freie Universität (FUB), Berlim, Alemanha. Doutor (2009) em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP), Brasil. Magister (2004) em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (PPGCOM-UnB), Brasil Linha de pesquisa Imagem, Estética e Cultura Contemporânea. Atua nas áreas de Midiatização, Teoria da Comunicação, Filosofia e Epistemologia da Comunicação, Comunicação e Cultura. Autor do livro Pensando a episteme comunicacional (EDUEPB: 2013 / ScIELO Livros). Líder de grupo de pesquisa certificado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), “Ambiente 33 - Espacialidades, Comunicação, Estética e Tecnologias”. 


REGISTRO BIBLIOGRÁFICO

Quiroga, T. (julio-diciembre, 2019). Midiatização e o entendimento desonerado. InMediaciones de la Comunicación, 14(2), 79-95.


Artículo publicado en acceso abierto bajo la Licencia Creative Commons - Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).


1 Naturalmente, a pergunta acerca das ciências da comunicação não advém nem se restringe ao paradigma da comunicação em rede, mas antes aos temas da comunicação de massa em que se destacam temas como da persuasão, recepção, formação da opinião pública, publicidade. Entretanto, em função da amplitude adquirida pelo fenômeno comunicacional com o advento da cibernética, que o faz incorporar nova condição histórica mediante sua inédita dimensão organizativa (Sodré, 2014), bem como enfrentar, a nosso ver, problemáticos hibridismos epistemológicos, sugerimos o advento do paradigma digital como ponto de inflexão do debate epistemológico da comunicação em nossa atualidade.