Financeirização, midiatização e dataficação como sínteses sociais
Financialization, mediatization and datafication as social synthesis
Financiarización, mediatización y datificación como síntesis sociales
DOI: https://doi.org/10.18861/ic.2019.14.2.2916
RAFAEL GROHMANN
rafael-ng@uol.com.br - Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-1063-8668
Fecha de recepción: 14 de septiembre de 2019
Fecha de aceptación: 30 de octubre de 2019
RESUMO
O artigo teoriza as interrelações entre financeirização, midiatização e dataficação, consideradas como sínteses sociais, nos termos de Sohn-Rethel (2017). Trata do papel dos processos comunicacionais na imbricação entre circulação do capital e circulação de sentidos. A comunicação, como organizadora da financeirização, sedimenta os sentidos da racionalidade neoliberal e do capitalismo de plataforma, envolvido em circulação de algoritmos e dados.
PALAVRAS-CHAVE: capitalismo de plataforma, dataficação, financeirização, midiatização.
ABSTRACT
The article theorizes the relationships between financialization, mediatization and datafication, considered as social syntheses, in Sohn-Rethel (2017) terms. We analyze the role of communication processes in the interplay between circulation of capital and circulation of meanings. Communication, as the organizer of financialization, sediments the meanings of neoliberal rationality and platform capitalism, involved in the circulation of algorithms and data.
KEYWORDS: platform capitalism, datafication, financialization, mediatization.
RESUMEN
El artículo teoriza acerca de las interrelaciones entre financiarización, mediatización y datificación, consideradas, según plantea Sohn-Rethel (2017), síntesis sociales. En ese marco, el trabajo se ocupa se pensar el papel de los procesos comunicacionales en la interacción entre la circulación de capital y la circulación de significados, y se sostiene que la comunicación, como organizadora de la financiarización, sedimenta los sentidos de la racionalidad neoliberal y el capitalismo de plataforma involucrados en la circulación de algoritmos y datos.
PALABRAS CLAVE: capitalismo de plataforma, datificación, financiarización, mediatización.
INTRODUÇÃO
Neste artigo, tratamos das interrelações entre midiatização, financeirização e dataficação, tratadas como sínteses sociais, nos termos de Sohn-Rethel (2017). Esse esforço passa por compreender a financeirização como um processo também comunicacional (Sodré, 2014), a partir da circulação comunicacional do capital. Se a própria ciência é uma arena de embates e lutas por classificações (Bourdieu, 1990), parece-nos que há um esforço de estirpar questões relacionadas ao capital da área da comunicação, como se fosse matéria estrangeira. O próprio Karl Marx é taxado erroneamente de “economicista” (Eagleton, 2012) para não tratar de temas marxianos/marxistas na comunicação (Fuchs, 2014). Certamente, a intenção aqui não é reduzir o papel da comunicação ao capital, mas situar o seu lugar, em uma rearticulação com as outras dimensões aqui discutidas. Seria preciso retomar uma integração das dimensões econômicas e culturais da comunicação, tal qual Williams (1979), privilegiando a análise de um “modo inteiro de vida” comunicacional.
Os “sentidos” em circulação continuam a ter um papel relevante na dimensão da circulação comunicacional do capital, pois o próprio capital produz e sedimenta sentidos sobre o que deve ser a vida em sociedade, atualmente a partir de uma governamentalidade neoliberal (Dardot & Laval, 2016), produzindo e fazendo circular sujeitos neoliberais. Esses sentidos são, ao mesmo tempo, sígnicos, culturais e materiais, como dimensões dos processos comunicacionais –e da própria noção de circulação (Grohmann, 2019a). Desta forma, podemos considerar a comunicação tanto a partir de sua “base material” quanto de seu “biombo ideológico” (Sodré, 2014), como parte do modo de produção capitalista.
Desta forma, é crucial mostrar como a comunicação se conecta com o modo de produção capitalista, de modo a ser um elemento central para seu sucesso. Segundo Sodré (2014), é um par indissolúvel: “o capitalismo financeiro é ao mesmo tempo financeiro e midiático: financeirização e mídia são as duas faces de uma mesma moeda chamada sociedade avançada” (2014, p. 55).
Falar em sentidos que circulam a partir do papel da comunicação na produção e circulação do capital não é, de algum modo, reduzir a comunicação ao sociológico. Como dissemos anteriormente,
há uma tentativa de desqualificar pesquisas que analisam valores e ideologias inscritas nos discursos, que fazem crítica ideológica da comunicação, com argumentos de que se reduz a comunicação ao político ou ao “sociologizante”, como se acusasse de partidarização ou militância e como se houvesse uma epistemologia “pura”, descolada das condições materiais de existência. (Grohmann, 2018c, pp. 3 e 4)
Uma visada comunicacional não se trata de um olhar único sobre as coisas nem do predomínio do sígnico sobre o sociológico, mas tão-somente maneiras diferentes de enxergar o mesmo objeto.
A partir disso, neste artigo tratamos: a) da financeirização da comunicação; b) das interrelações entre financeirização, midiatização e dataficação, aprofundando a teorização sobre esta última.
FINANCEIRIZAÇÃO E COMUNICAÇÃO
Se no volume II d’O Capital, Marx (2014) concebe a circulação do capital-dinheiro como uma forma distintiva, no volume III, verifica a existência de um “capital fictício”. Ele não é o primeiro autor a falar no termo. Durand (2018), ao fazer uma genealogia do conceito, aponta a presença da noção já em tratados dirigidos ao rei Jorge III em 1805. Mas, além de Marx, a noção ganha relevância na obra de Hayek (1975), para quem o capital fictício se refere à criação monetária de capital por meio de sistema de crédito, em que não há contrapartida em recursos efetivos, possuindo, portanto, um caráter desestabilizador.
Já para Marx (2017), o capital fictício tem origem no desenvolvimento do sistema de crédito e trata-se de um “sistema artificial”, onde a cédula bancária nada mais é do que um signo circulante de crédito, não existindo apenas, pois, a valorização real do capital. Isto é, o capital fictício se adianta ao processo de valorização futuro. Segundo Marx (2017), o capital bancário é composto, em sua maioria, de capital fictício, e se apresenta em formas como “dívidas (letras de câmbio), títulos da dívida pública (que representam capital pretérito) e ações (direitos sobre rendimentos futuros” (2017, p. 527). Além disso, o valor monetário do capital também é fictício: “uma grande parte desse capital monetário tem de ser sempre algo fictício, isto é, títulos sobre valores, do mesmo modo que os signos de valor, o dinheiro” (Ibíd., pp. 566 e 567).
A partir disso, o autor identifica três formas de capital fictício, a saber: títulos da dívida pública, moedas de crédito e ações. Assim sendo, a circulação do capital não se deve somente à circulação do valor real do capital, mas à circulação de valorização fictícia. Essa valorização fictícia envolve, segundo Durand (2018), avaliação autorreferencial dos rendimentos previstos e a “atualização de rendimentos esperados dos processos de valorização reais que não ocorrem” (2018, p. 61).
Em pleno século XIX, Marx nos dá pistas de como pensar as transformações do capital e do capitalismo no século XXI. Fala, inclusive, sobre as relações entre crises e capital fictício, pois, para ele, o capital fictício serve tanto como algo que faz acelerar a valorização do capital como também fonte de crises: “esse capital monetário fictício diminui enormemente em épocas de crises e, com ele, cai o poder seus possuidores de obter dinheiro no mercado” (Marx, 2017, p. 550). Aqui está uma das grandes diferenças entre os diagnósticos a partir das distintas épocas: na atual fase do capitalismo, as crises são produzidas e administradas racional e artificialmente pelo próprio sistema, como maneira de aumentar o capital fictício.
Para Lazzarato (2015), a crise é o modo de governo do capitalismo contemporâneo, marcado pela política da dívida. Já Harvey (2016) concorda com o argumento de orquestração da crise para administrar o sistema e considera crises como “momentos de transformação em que o capital tipicamente se reinventa e se transforma em outra coisa” (2016, p. 17), para pior ou melhor, com contradições que apenas se deslocam e não se resolvem.
A partir disso, pensamos, a partir de Harvey (2004), a predominância da acumulação por espoliação, que se dá principalmente a partir de 1973, como parte do processo de financeirização. A vanguarda desse tipo de acumulação se dá por meio dos “ataques especulativos feitos por fundos derivativos e outras grandes instituições do capital financeiro” (Harvey, 2004, p. 123), liberando um grande conjunto de ativos a custo muito baixo. Esta lógica tem, por exemplo, efeitos devastadores –para usar uma expressão de Antunes (2018)– sobre o mundo do trabalho, com a desvalorização crescente da força de trabalho. Então, “esses ativos desvalorizados podem ser vendidos a preço de banana e reciclados com lucro no circuito de circulação do capital pelo capital sobreacumulado” (Harvey, 2004, p. 124). Podemos, então, relacionar acumulação por espoliação e capital fictício como elementos do processo de financeirização.
Esses elementos levam-nos a pensar no processo “mágico” de valorização do capital. Conforme Durand (2018), “as finanças instauram, assim, um modo de valorização do capital que parece dar ao dinheiro uma faculdade mágica” (2018, p. 55). A isso Harvey (2018) chama de “loucura da razão econômica” e Binswanger (2011) denomina “processo alquímico da economia moderna”, algo semelhante à produção de ouro artificial. Para o autor suíço, esta “magia” acaba por criar excedentes que não seriam explicados pela força de trabalho humano, sendo que a ilusão da realização humana é a economia comportar-se “como se o produto social fosse realmente apenas o resultado do trabalho (labuta árdua), do capital (poupança) e do processo tecnológico” (2011, p. 81).
Essa “magia” ou “ficcionalização” não quer dizer uma imaterialidade do capital1, pois a apropriação de recursos continua a ser material e concreta (Huws, 2014), nem enfatizar o caráter simbólico do capital, mas mostrar como as mudanças nos processos de circulação e acumulação do capital apresenta um componente comunicacional, sem o qual não é possível explicar completamente o processo de midiatização.
A financeirização, segundo Braga (1997), pode ser traduzida como um “padrão sistêmico de riqueza”. Durand (2018), de forma similar, trata a financeirização como fenômeno sistêmico e encarnação –não só histórica, mas espacial– do modo de produção capitalista, envolvendo pontos como liberalização financeira, complexificação dos mercados financeiros, aumento do endividamento de instituições –inclusive Estados– e sujeitos. Enquanto componente estrutural do modo de produção capitalista, a financeirização não pode ser vista isolada dos processos políticos e sociais, especialmente o neoliberalismo, entendido não somente como política econômica, mas como racionalidade e governamentalidade (Dardot & Laval, 2016; Brown; 2016). Isso impede um olhar somente do ponto de vista da economia em relação à financeirização, permitindo outras articulações, inclusive com o comunicacional.
O que a financeirização traz é um novo padrão de acumulação e de extração do valor no capitalismo, com uma crescente assimetria entre produção e circulação do capital, além de apropriação e reconfiguração dos fluxos de capital (Lazzarato, 2015; Lapavitsas, 2013). O rentismo, a política de dívidas e a especulação, então, são características exacerbadas (nos termos de Harvey, 2018) no atual modo de produção capitalista, levando a outro patamar, nos termos de Marx (2017), o “mais puro e colossal sistema de jogo e fraude” (2017, p. 500), para “limitar cada vez mais o número dos poucos indivíduos que exploram a riqueza social” (ídem), com o argumento de um suposto maior desenvolvimento do capitalismo, o que garante, segundo o autor alemão, “o agradável caráter híbrido de vigaristas e profetas” (ídem, 500).
É preciso salientar, ainda, que o impacto da financeirização nas diferentes instituições não se dá no abstrato, mas significa uma transformação concreta na vida de diferentes sujeitos sociais, em busca de emprego, educação ou moradia, por exemplo. Atua, pois, na vida cotidiana de diferentes famílias, no Sul e no Norte globais, de distintas maneiras. Como mostra Sciré (2011), as práticas populares de consumo também têm apresentado características financeirizadas. Van der Zwan (2014) mostra que, diferentemente de pesquisadores focados na “macroeconomia” da financeirização, as investigações acerca da “financeirização da vida cotidiana” mostram como ela opera em diferentes níveis e dimensões. Para ela, essa financeirização da vida cotidiana foi possibilitada tanto por tecnologias digitais quanto pela transformação geral da vida social em mercadoria, além de ser facilitada e legitimada por discursos do que chamaremos de “signos do capital em circulação”. Como afirma Dyer-Witheford (2015), tanto a financeirização quanto a comunicação trazem “processos circulatórios [que] tanto repercutem quanto são moldados pela composição de classes” (2015, p. 82).
Falar, pois, em financeirização da comunicação significa desde a própria sua lógica aplicada aos meios de comunicação enquanto corporações até o domínio do capital financeiro em circulação pelos processos comunicacionais, passando pela financeirização das instituições envolvidas com a comunicação, desde agências de publicidade até universidades e a pesquisa acadêmica em comunicação. Ocorre, pois, uma naturalização dessa lógica financeirizada/neoliberal, tomada como único caminho possível, como um “realismo capitalista” (Fisher, 2011).
Assim, a financeirização da comunicação é expressa, de forma estruturante, na linguagem do capital em circulação –que serve como base para sedimentação e fixação da racionalidade neoliberal em todos os espaços– e também no circuito do trabalho digital (Fuchs & Sandoval, 2014) como sua base material. Essas mudanças no processo de acumulação capitalista se refletem, pois, em mudanças em processos produtivos e comunicacionais, marcados por flexibilização e precarização do trabalho.
A comunicação é o espaço organizador da financeirização, enquanto lugar de circulação dos sentidos –a partir de gestão e controle dos processos comunicacionais, e também de articulação entre capital financeiro, tecnologia, linguagem e mundo do trabalho (produção). Tanto a circulação de mercadorias quanto a circulação de sentidos fazem parte do regime de signos linguísticos. Segundo Goux (1973), o “mundo da circulação” é o que produz uma comunidade de valor. Podemos considerar que o valor da linguagem na circulação do capital reside em sua circulação, como narrativas que regulam e legitimam modos de ser e aparecer do capital. A circulação incessante dos signos do capital é o próprio capital desses signos. É na circulação que ocorre a sedimentação de uma gramática do capital imposta a todos como única possibilidade de sobreviver no mundo.
Compreender a comunicação como um braço auxiliar da financeirização é entende-la todo um sistema de produção e circulação de sentidos, que perpassa o micro e o macro da vida social e comunicacional. É preciso, então, mobilizar a linguagem como capital para que outros sentidos sejam circulados, para que outros mundos sejam possíveis. A disputa de sentidos nas lutas por circulação envolve uma luta pelos modos de circular a linguagem. Segundo Marazzi (2008), a linguagem perpassa toda a economia capitalista, produzindo formas de organização e rearticulando espaços de produção. O capital, pois, também é um “operador semiótico” (Lazzarato, 2015). Os sentidos em circulação não se dão no vácuo, mas em determinado contexto econômico, inseridos no modo de produção capitalista.
As conexões entre financeirização e tecnologia2 –que ocorrem em todo o processo de desmaterialização do dinheiro (Goux, 1973) em direção ao crédito e ao dinheiro digital– pode ser percebida atualmente tanto pelos processos de midiatização e tecnologia quanto pela própria circulação da “ideologia do Vale do Silício” (Schradie, 2017)3. A articulação entre esses dois elementos auxilia na aceleração da circulação do capital, com uma “velocidade circulatória dos processos em todas as instâncias do socius, agora imerso em fluxos, conexões e redes” (Sodré, 2014, p. 57). Como mostra Sodré (2014), a Internet é lugar de circulação tanto de mensagens e sentidos como também de dinheiro, com inúmeras transações bancárias diárias, por meio de aplicativos de bancos, lojas como App Store, plataformas como Uber, IFood e Rappi até os mais variados sites de compra nas mídias digitais – a circulação de capital atua conjuntamente à circulação de plataformas, força de trabalho e sentidos.
CONECTANDO FINANCEIRIZAÇÃO À MIDIATIZAÇÃO E À DATAFICAÇÃO
A partir do exposto acima, podemos afirmar que a financeirização atua conjuntamente com os processos de midiatização e dataficação. Os debates e práticas sobre bitcoin, por exemplo, atuam nessa intersecção, como um poderoso símbolo da desmaterialização do dinheiro e da alquimia da economia previstas por Goux (1973) e Binswanger (2011). Segundo Baldwin (2018), ocorre uma “uberização” do dinheiro, conectando pares em uma rede sem a necessidade de mediação governamental, bancária ou financeira. Há maior autorreferencialidade do dinheiro, que, enquanto moeda digital, também é uma linguagem (incluindo escritas e códigos). A partir disso, o mantra in digital we trust torna-se a síntese da articulação entre capitalismo financeiro e tecnologia, envolvendo a “silicolonização do mundo” (Sadin, 2016), como faceta de um liberalismo digital, reforçando ainda o fetichismo tecnológico (Ampuja, 2016). Golumbia (2016) acrescenta que o bitcoin –como retórica, moeda e software– só pode ser executado/ativado devido à política de direita e ao chamado “ciberlibertarianismo”.
Outro exemplo é a apropriação das plataformas digitais em relação à técnica de derivativos, uma espécie de seguro contra riscos, que ganhou protagonismo “não apenas por ser um comércio fundamentado na gestão de riscos de atividades econômicas, como também pela digitalização dos pregões e pelos avanços em teorias probabilísticas” (De Marchi, 2018, p. 194). Essa lógica social de derivativo auxilia na produção e circulação do valor por meio de algoritmos, algo utilizado tanto em sites de apostas quanto em plataformas como Facebook (Arvidsson, 2016) e Youtube (De Marchi, 2018). Segundo Arvidsson (2016), “os derivativos operam criando uma realidade virtual de relações e conexões que não precisam de nenhuma fundamentação ontológica” (2016, p. 6). Aplicada às plataformas digitais e com o uso de algoritmos, cria-se ainda “certo álibi de impessoalidade e precisão às leis do mercado” (De Marchi, 2018, p. 200). Como diz Harvey (2018), tudo se passa como se a ciência econômica contemporânea, do ponto de vista dela mesma, não possuísse contradições.
Então, observamos um protagonismo dos dados na financeirização da comunicação, não enquanto autômatos ou vistos de forma tecnodeterminista, mas enquanto parte do modo de produção capitalista, considerando arquivamento, filtragem e extração de dados. Os conjuntos de dados circulantes nas redes e mídias sociais são, então, de alguma maneira, uma dimensão comunicacional do capital atualmente (Mosco, 2014). A esse protagonismo dos dados chamamos de “dataficação”, processo que Couldry e Hepp (2016) veem como aprofundamento da “midiatização profunda”, impactando tanto na circulação de sentidos quanto a circulação do capital.
Neste sentido, podemos considerar também a “midiatização” com um papel central na circulação comunicacional –“veloz circulação das formas” (Sodré, 2014)–, enquanto conceito “descritivo de um processo de mudanças qualitativas em termos de configuração social por efeito da articulação da tecnologia eletrônica com a vida humana” (2014, p. 109), pensando a noção de forma crítica, como alertam Ampuja, Koivisto e Väliverronen (2014) e Rüdiger (2015).
Em geral, os pesquisadores europeus de midiatização, como mostra Murdock (2017), não pensam a sua relação com o capitalismo. Segundo o autor, “sem uma investigação das dinâmicas e contradições do capitalismo mercantilizado, é impossível explicar totalmente as forças motrizes que impulsionam e organização a midiatização” (2017, p. 15). Krotz e Hepp (2014) enfatizam que a questão da pesquisa em midiatização está na “mudança”, envolvendo relações entre fatores midiáticos/tecnológicos e sociais/culturais. Há um ponto relativamente ausente dessas pesquisas que é: apontar, então, o que significam, no macrossocial, as mudanças –e também as reproduções– entre mídia e sociedade, considerando que a circulação de sentidos se dá em um mundo marcado pela governamentalidade neoliberal, isto é, como estamos tentando mostrar, a circulação de sentidos se dá com algum nível de congruência com a circulação do capital.
Então, é interessante captar o que Jansson (2017) chama de “dialética da midiatização”, envolvendo as desigualdades da presença dos distintos dispositivos midiáticos nas instituições e na vida cotidiana. Isso significa reconhecer as contradições e desigualdades nos processos de midiatização: por um lado, há lógicas midiáticas dominantes relacionadas tanto à financeirização quanto à circulação do capital, contribuindo para sua própria aceleração; por outro, há outras lógicas de classe, gênero, raça, entre outras, fazendo circular outros sentidos, o que Jansson (2017) chama de contramidiatização e lutas por autonomia e o que denominamos aqui de “lutas por circulação”. Assim, trata-se de inserir a midiatização e o bios midiático a partir de uma perspectiva não homogênea e de intersecção entre circulação de sentidos e circulação do capital, como um processo atuante e estruturante nas duas esferas.
A partir do exposto, podemos considerar financeirização, midiatização e dataficação como inter-relacionadas e envolvidas mutuamente na circulação de sentidos e na circulação do capital, isto é, como articulações entre si, no sentido dado por Hall (2003). Concebemos, assim, as três noções como sínteses sociais, que para Sohn-Rethel (2017), significam uma rede de relações pela qual as sociedades formam um todo coerente, sendo uma condição básica para a existência humana em determinada época, retendo múltiplas ligações, ou diferentes particularidades, para utilizar um termo lukácsiano (Lukács, 2012). São as “funções socialmente sintéticas” de cada época: “as mudanças significativas na formação da síntese social levam, de fato, a mudanças equivalentes na formação da ciência” (Sohn-Rethel, 2017, p. 183). E se, como diz Lukács (2012), a ciência brota da vida, trata-se de mudanças na vida concreta de sujeitos que faz com que sejam necessários olhares para financeirização, midiatização e dataficação.
Mas isso não significa que esses processos sejam homogêneos ou únicos. Sohn Rethel (2017) afirma que os outros processos não deixam de existir, mas também são transformados e tensionados. Em uma dimensão, midiatização, financeirização e dataficação estão sujeitos aos distintos processos que ocorrem devido a questões de território, classe, raça, gênero, envolvendo identidades, espacialidades e temporalidades. Andrejevic (2013), por exemplo, fala em desigualdades envolvendo a big data, e Lapavitsas (2013) aborda os impactos diferentes da financeirização nos países em desenvolvimento. Já em uma dimensão epistemológica, podemos dizer que as pesquisas em áreas como ciências sociais ou comunicação são, de alguma maneira, tensionadas e com seus conceitos tradicionais deslocados devido a essas “sínteses sociais”. No caso das ciências sociais, não há mais como compreender temáticas consideradas clássicas na área como desigualdade, violência ou urbanização sem considerar questões de ordem de midiatização, financeirização ou dataficação. Trata-se, então, de uma reconfiguração do “olhar”. Beer (2018), por exemplo, baseia-se na noção de “olhar clínico” de Foucault (1980) para mostrar como o “olhar de dados” (data gaze) reconfigura os processos sociais contemporâneos.
Desta forma, financeirização, midiatização e dataficação são parte tanto da circulação de sentidos quanto da circulação do capital, neste caso marcando também os papeis da comunicação no modo de produção capitalista. A comunicação auxilia na aceleração da circulação do capital, com papel na produção, extração e circulação de valor, apresentando também meios e processos de produção e circulação, articulados às tecnologias, consideradas de um ponto de vista sociomaterial. No “capitalismo comunicativo” (Dean, 2008) e suas dinâmicas, inclusive espaçotemporais, há lutas envolvidas na circulação de sentidos e circulação do capital.
DETALHANDO A DATAFICAÇÃO
A dataficação pode ser definida como a crescente centralidade dos dados na vida cotidiana, afetando os processos comunicacionais. Isto é, a sociabilidade atual não apresenta somente uma dimensão midiatizada, mas é formada por dados e algoritmos, como infraestruturas da comunicação (Murdock, 2018). Isso significa dizer que, mesmo em uma dimensão discursiva, os signos nas mídias digitais também são dataficados. Em outras palavras: em ambientes digitais, não há circulação comunicacional sem rastros digitais (Breiter & Hepp, 2018). Os rastros digitais, então, são uma maneira de conformar a circulação comunicacional a partir da circulação de dados/ circulação algorítmica.
Os dados também têm crescente importância no que Srnicek (2016) chama de “capitalismo de plataforma”. Para ele, “plataformas são infraestruturas digitais que possibilitam a interação entre dois ou mais grupos” (2016, p. 43), uma série de ferramentas que possibilita aos usuários a construção de seus próprios produtos e serviços, provendo uma infraestrutura básica para realizar a mediação entre diferentes grupos. No fundo, as plataformas são desdobramentos de processos históricos envolvendo o próprio modo de produção capitalista.
Van Dijck, Poell e De Waal (2018) ampliam a ideia de um “capitalismo” de plataforma para uma “sociedade” de plataforma, em que a sociedade em seus diferentes grupos e instituições é plataformizada –ou está passando por um processo de plataformização– o que, para nós, também se relaciona com o momento de “midiatização profunda” (Couldry & Hepp, 2016). Isso significa dizer que as plataformas não refletem o social, mas criam as estruturas sociais onde vivemos, gradualmente infiltrando nas práticas na sociedade. Segundo Van Dijck, Poell e De Waal (2018), uma plataforma é abastecida por dados, automatizada e organizada por meio de algoritmos e interfaces, formalizada por relações de propriedade e guiadas por modelos de negócios e governadas por meio de termos de acordo dos usuários. Não são neutras nem livres de valores, vindo com normas inscritas em suas arquiteturas.
Compreendemos as plataformas como meios de comunicação e meios de produção (Williams, 2011). Isto é, enquanto mídias, as plataformas são infraestruturas de comunicação (Couldry, 2019). A partir de suas arquiteturas, servem para produzir e circular sentidos, por meio de distintas linguagens e atividades de trabalho, inclusive os dados. Na circulação do capital, as plataformas agem no sentido de sua aceleração, tal qual Marx (2011) apontava em relação ao papel dos meios de transporte e comunicação. As plataformas circulam como capital, dados, vigilância, linguagem e trabalho.
É neste contexto de capitalismo de plataforma que os dados têm cumprido funções-chave, pois se colocam como infraestruturas digitais da circulação do capital. Há um mantra que vem sendo repetido no campo dos negócios: “os dados são o novo petróleo”, o que ajuda a refletir sobre a centralidade dos dados no capitalismo contemporâneo. Couldry e Mejias (2019) justificam que os dados não são o novo petróleo a partir do conceito de colonialismo de dados, pois os dados não são produtos naturais, mas precisam ser produzidos e apropriados, no que Morozov (2018) chama de extrativismo de dados. Isso nos leva a compreender os dados como histórica e materialmente produzidos, situados e circulados, não sendo autômatos ou só produtos tecnológicos, mas atuam no modo de produção capitalista em processos de documentação, filtragem e extração. Como mostra Srnicek (2016), os dados servem para “formar e dar vantagens competitivas aos algoritmos, permitir a terceirização dos trabalhadores e a otimização e flexibilidade dos processos produtivos” (2016, pp. 41 e 42), inclusive, para controlar os trabalhadores, com os dados pessoais funcionando tanto como capital fixo quanto capital circulante (Fuchs, 2017).
Tudo se passa como se o processo de circulação de dados fosse algo natural, como algo neutro, objetivo, acima de tudo, o que Van Dijck (2014) chama de ideologia do dataísmo e Beer (2018) nomeia como “olhar de dados”. Desta forma, os dados são elevados a semideuses inquestionáveis, a partir do qual as decisões são tomadas, colocado como novo “paradigma científico”. Expressões como Big Data e algoritmos circulam no mundo social como mantras de reafirmações tecnológicas e empresariais, sinônimos de contemporaneidade e inovação, instituindo um “neopositivismo de dados” (Fuchs, 2017), que impacta tanto o mundo dos negócios como o próprio campo acadêmico.
A circulação de dados, assim como a circulação algorítmica –não há como pensar algoritmos sem dados– colocam-se, ao mesmo tempo como circulação de sentidos e circulação do capital. Beer (2018) mostra que o olhar de dados, assim como o olhar clínico na visão foucaultiana, mudou a perspectiva das pessoas nos processos de interação social e nas instituições, como uma visada prioritária e inquestionável. Entretanto, em sua pesquisa sobre empresas de análise de dados, ele mostra como essa retórica se liga a atributos como neutralidade, objetividade e infalibilidade.
A mesma questão se passa com a inteligência artificial. Tratada de forma imponente e solucionadora dos problemas da sociedade (o tal “solucionismo tecnológico” criticado por Morozov, 2018), a “inteligência artificial geral” é compreendida como uma ficção hollywoodiana por estúdios do assunto, como Casilli (2019) e Dyer-Witheford, Kjosen e Steinhoff (2019). As promessas não cumpridas da inteligência artificial têm feito publicações como Wired rever o chamado “futuro da inteligência artificial” devido a perda de empresas ligadas aos grandes conglomerados digitais.
O tecnochauvinismo desconsidera o fato de a chamada “inteligência artificial” ser uma construção retórica e humana, marcada em suas arquiteturas pelas ideologias dos seus produtores, como mostra Wajcman (2019) em pesquisa no Vale do Silício. Trata-se, como afirma Broussard (2018), uma “desinteligência” artificial, cujos princípios não podem ser naturalizados. Isso se dá à custa de muito “trabalho fantasma” (Gray & Suri, 2019) e “microtrabalho” (Casilli, 2019) como os da Amazon Mechanical Turk, cujo slogan é “inteligência artificial”.
A partir disso, podemos considerar que a dataficação e a plataformização envolvem não só a crescente centralidade dos dados na vida cotidiana, mas a circulação de sentidos sobre plataformas, dados, algoritmos e inteligência artificial em processos comunicacionais e produtivos, envoltos nas interações cotidianas e nas instituições. Isso ocorre de maneira inseparável à circulação do capital e sua dimensão comunicacional. Circular os sentidos sobre dados, algoritmos e inteligência artificial é sedimentar sentidos e produzir/fazer circular capital em torno desses mesmos elementos. A retórica envolvida no data gaze, como uma caixa preta, se dá a partir da cristalização dos sentidos de neutralidade, objetividade e infalibilidade desses dispositivos. Isso afeta as corporações, o Estado e a sociedade civil.
A dataficação e a plataformização são, ao mesmo tempo, a expressão das infraestruturas digitais, das interações midiatizadas e do capital financeirizado. Como síntese social (Sohn-Rethel, 2017), é capaz de mobilizar processos comunicacionais e produtivos a partir da circulação do ideário do Vale do Silício –enquanto imagem hollywoodiana da racionalidade neoliberal– a todos os aspectos da vida social, como mostra Mosco (2019) em relação às “cidades inteligentes” e à “Internet das coisas’.
Não se trata somente de tecnologia, cultura, economia ou discurso. Compreender os dados e as plataformas como sínteses sociais é entender como a comunicação serve como elo articulador entre as diferentes dimensões da sociedade e do capitalismo de plataforma, interligando eixos tecnológicos, culturais, financeiros e discursivos. É, portanto, a própria atualização da circulação comunicacional do capital.
Os dados não são naturais, mas construídos como linguagens em processos de trabalho (novamente, as questões de linguagem e trabalho se impõem na circulação de sentidos). E os dados só servem a determinados fins comunicacionais após processos de “mineração de dados”. Assim, podemos pensar, de fato, os dados como trabalho. Em contexto de dataficação, os dados são fornecidos por cidadãos principalmente a partir de trabalho gratuito/ não pago e por “microtrabalhadores” em condições precárias de trabalho (Gray; Suri, 2019; Casilli, 2019), que têm seus recursos reapropriados financeiramente por grandes corporações tecnológicas, no processo que Couldry e Mejias (2019) chamam de colonialismo de dados. Há, então, uma mais-valia dataficada ou mais-valia algorítmica, na transformação da força de trabalho gratuita empenhada na construção/produção/circulação dos dados em capital.
A extração de dados, desta forma, não é mera coleta de informações, mas extração de valor a partir de trabalho humano em uma mais-valia dataficada ou algorítmica. Esta é a base de construção e o modo de acumulação do capitalismo de plataforma. Como afirma Sadowski (2019), “quando os dados são tratados como uma forma de capital, o imperativo de coletar muitos dados a partir de muitas fontes intensifica práticas existentes de acumulação e leva à criação de novas” (2019, p. 7). A acumulação de dados, nesse sentido, é também acumulação financeira com o auxílio da circulação comunicacional do capital: “há uma prática mais vigorosa de extração de dados, no qual os dados são obtidos sem consentimento e compensação justa para produtores e fontes desses dados” (Sadowski, 2019, p. 7). Falar em capitalismo sempre significou pensar em apropriação de recursos, como mostra Huws (2019) ao negar adjetivos como “plataforma” ou “vigilância” ao capitalismo contemporâneo. O que se argumenta aqui é que há novos processos –inclusive comunicacional– para extração de valor.
Esse processo de acumulação e extrativismo de dados acontece em meio a uma gig economy global (Graham & Anwar, 2019), com processos geopolíticos desiguais, considerando a força tecno-financeira das Big Tech, principalmente nos Estados Unidos e na China. As plataformas digitais criam atividades de trabalho planetárias, mas que “raramente reforçam o poder estrutural e associativo dos trabalhadores (...) Os trabalhadores podem vender sua força de trabalho globalmente, mas ainda estão presos aos locais onde vão dormir todas as noites” (2019, s/n). Isto é, a circulação e a extração de valor por meio de dados se dão de formas desiguais em diferentes países e regiões, com lógicas de classe e obedecendo aos parâmetros da financeirização-dataficação global.
Por isso faz sentido a expressão “colonialismo de dados”, de Couldry e Mejias (2019): há roubo de recursos na circulação de dados. Contudo, o desenvolvimento argumentativo da metáfora –com a afirmação de que “há uma colonização de toda a vida social” e relativizando o peso do trabalho– faz perder a própria potência da expressão. Se, por um lado, há uma crítica aos conglomerados tecnológicos enraizados no Vale do Silício, são invisibilizados o próprio processo de colonização histórica e as lutas de classes. Quem extrai o que de quem? Para servir a quais propósitos? Nesse contexto, como diria Álvaro Vieira Pinto (2008), o Brasil estaria destinado ao “vale de lágrimas”?
A circulação de dados e algoritmos, na circulação comunicacional do capital, não acontece da mesma forma nas diferentes classes sociais, servindo para classificar, vigiar e discriminar pobres e negros, automatizando a desigualdade (Eubanks, 2018). Os algoritmos apresentam vieses de raça, classe e gênero, como apontam trabalhos de Noble (2018) e Silva (2019), que falam em termos como “algoritmos da opressão” e “racismo algorítmico”, respectivamente. Desta forma, há uma circulação algorítmica dos sentidos, desde a personalização automatizada dos gostos até os dispositivos de reconhecimento facial que servem para perpetuar desigualdades.
Falar em circulação algorítmica dos sentidos quer dizer não encarar os dados como uma agulha hipodérmica, infalível e de ordem da transmissão. Berardi (2012) pontua que “a premissa do dogmatismo neoliberal é a redução da vida social a implicações matemáticas dos algoritmos financeiros” (2012, p. 31). Mas nós, que não somos do dogmatismo neoliberal, não podemos, pois, encarar os dados da mesma forma, como se infalíveis ou objetivos fossem. É preciso, pois, pensar em alternativas comunicacionais para apreender os dados em sua circulação de sentidos. O “circuito da cultura” não deixa de existir em tempos de data gaze. Beer (2016) considera que é preciso apreender a circulação de dados como uma combinação de ordem e desordem para conseguir capturar os modos como os dados são produzidos e circulados de volta para a cultura, mudando as formas pelas quais a cultura é disseminada, produzida e consumida, modificando nossas vidas cotidianas.
Tratar de dataficação, midiatização e financeirização como sínteses sociais em meio à circulação comunicacional do capital é compreendê-las de forma complexa em suas diferentes facetas (cultural, econômica, política, linguística, jurídica, sempre em articulação com a comunicação) e sempre em movimento, não como um processo estanque. A circulação algorítmica de sentidos e a circulação de dados se formam a partir de circuitos de acumulação e resistência (Dyer-Witheford, 1999). As lutas por circulação e a circulação das lutas acontecem também em contexto de capitalismo de plataforma, em que é possível pensar, por exemplo, em resistências algorítmicas a partir de práticas midiáticas (Velkova & Kaun, 2019). Isso significa entrever outras formas de ver, pensar e atuar no mundo desde o ponto de vista dos processos comunicacionais.
Falar em “lutas” ou “resistências” não tem nada de original –como foram-nos alertados os pareceristas– justamente porque trata-se de um processo histórico. O papel da pesquisa em comunicação não é só debater o que está na “crista da onda”, mas como processos comunicacionais que são históricos se atualizam e se reconfiguram. Enfrentar o combo dataficação-midiatização-financeirização é o ponto estrutural de quaisquer “práticas autônomas de comunicação” (Brophy & Cohen; De Peuter, 2015). Temos tratado disso empiricamente em pesquisas com cooperativas de comunicadores (Grohmann, 2018a; 2018b; 2019b) e com processos de organização coletiva de trabalhadores de plataformas digitais (Grohmann, no prelo). Nessas pesquisas, temos enfatizado potencialidades, limites e contradições dessas circulações de lutas por sentido.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As relações entre financeirização, midiatização e dataficação como síntese sociais, longe de nos mostrarem um mundo homogêneo, evidenciam como a comunicação engendra circulação de sentidos e atua na circulação da capital a partir dessas dimensões. A racionalidade neoliberal apresenta, então, suas facetas econômicas, tecnológicas e linguageiras com o auxílio dos processos comunicacionais. Mas isso não quer dizer sua totalização sem possibilidades de resistências ou alternativas, pois, como preconiza Huws (2014), novas formas de controle exigem novas maneiras de organização e resistência. A isso Dyer-Witheford, Kjosen e Steinhoff (2019) chamam de heptágono de lutas envolvendo capital e inteligência artificial. Isso pode ser visto nas novas organizações dos trabalhadores das plataformas digitais, como tem mostrado as pesquisas de Cant (2019), Woodcock (2019) e Salehi et al. (2015).
Enfrentar, pois, o “realismo capitalista” (Fisher, 2011) significa confrontar os mecanismos dessas sínteses sociais, no sentindo de confrontar e quebrar suas lógicas, a partir de brechas, fissuras e tentativas. As lutas no âmbito da circulação do capital, para Harvey (2018), tanto podem “constrange[r] quanto facilita[r] certas formas de pensamento e ação” (2018, p. 56). É uma dialética entre expressão e exploração (Huws, 2014) envolvendo a circulação do capital e a circulação do comum (Dyer-Witheford, 2015). Compreender os processos comunicacionais a partir da circulação de sentidos não é para somente analisa-los em uma dimensão “escolástica” –nos termos criticados por Bourdieu (2001)– mas para revesti-los de disputas e lutas por sentido, nunca ensimesmados em microprocessos interacionais, mas dialeticamente relacionados às sínteses sociais. A circulação comunicacional é, então, uma circulação de lutas por sentidos.
Pensar a comunicação a partir da midiatização, dataficação e financeirização como sínteses sociais podem significar múltiplos desenhos de pesquisa –como nós mesmos temos feito em nossas investigações e citamos acima. Não compreendemos os processos analisados neste artigo como algo que seja operacionalizável apenas de um jeito4 em pesquisas empíricas, pois é do encontro do real e concreto com os conceitos e subjetividades dos pesquisadores que os desenhos de pesquisa são construídos (Vieira Pinto, 1979). Uma illusio escolástica ou, como diz Mészáros (2009, “o ilusório engajamento ‘supraideológico’ –ou ‘pós ideológico’– na análise pela análise culmina na prática da metodologia pela metodologia” (2009, p. 289). Ir além dessa “epistemologia por epistemologia” exige, pois, um caminho rumo a pesquisas-ação, pesquisas-intervenção e outras experimentações metodológicas, que temos, tentativamente, trabalhado em nossas pesquisas empíricas.
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*Contribución: el 100% del trabajo pertenece al autor.
IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR
Rafael Grohmann. Doutor e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP), Brasil; com estágio de pós doutoramento na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Brasil. Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Brasil. Coordenador do GT “Circulação e Usos Sociais das Mídias da Compós” da COMPÓS (Associação Nacional dos Programas de Pós-Graduação em Comunicação), Brasil. Editor da revista E-Compós. Tópicos de pesquisa relacionados à sua área de trabalho: comunicação e trabalho, trabalho digital e circulação de sentidos. Ele publicou vários artigos, incluindo: A Noção de Engajamento: sentidos e armadilhas para a pesquisa em comunicação (2018, Revista Famecos) e Ensinar metodologia: questões epistemológicas nas proposições de 33 programas de ensino da disciplina em cursos de jornalismo (2017, Comunicação & Educação). Apresentou trabalho no Critical Mediatization Research Conference em Bremen em 2016.
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Artículo publicado en acceso abierto bajo la Licencia Creative Commons - Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).
1 Sobre isso, discutimos em Grohmann (2016).
2 “É real o fato histórico de que o mercado financeiro e a tecnologia deram-se as mãos para erigir o seu bios, uma nova orientação existencial afim ao processo planetário de modernização do capital” (Sodré, 2014, p. 258).
3 Inclusive, pode ser pensado como a tecnologia é pautada midiaticamente a partir de uma lógica do capital financeiro, vide os debates sobre internet das coisas e indústria 4.0.
4 Como afirma Vieira Pinto (1979), “hipótese e teoria, e a verificação que ambas exigem, não têm lugares fixos no processo metodológico, nem limites imóveis a não ser nos esquemas abstratos dos manuais escolares de lógica formal. A concepção dialética rebela-se contra estas divisões e esquematizações, sempre desmentidas pela prática histórica da ciência” (1979, p. 474).