Ativação de dispositivos comunicacionais.
Um estudo da noção de dispositivo em eleições recentes em Goiânia, Brasil
Activation of communicational devices.
A study of the notion of device in recent elections in Goiânia, Brazil
Activación de dispositivos comunicacionales.
Un estudio de la noción de dispositivo en las elecciones de 2016 en Goiânia, Brasil
DOI: https://doi.org/10.18861/ic.2019.14.2.2917
LUIZ SIGNATES
signates@gmail.com - Universidade Federal de Goiás, Brasil.
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9348-9295
PAULO ALEXANDRE FARIA CAMPOS
paulo@agencia.casa - Universidade Federal de Goiás, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0727-9089
Fecha de recepción: 14 de septiembre de 2019
Fecha de aceptación: 20 de noviembre de 2019
RESUMO
Este artigo procura discutir o dispositivo interacional, apontando sua amplitude como uma construção capaz de ajudar a análise de episódios comunicacionais e ao mesmo tempo afirmando uma composição para o dispositivo que inclua, entre seus elementos, um que seja seu ativador e ponto de partida para sua demarcação. Sobre a amplitude do instrumento, o artigo apresenta as vantagens da noção de dispositivo interacional ou comunicacional, em relação a ideia/conceito em vigor nos modelos tradicionais de análise da comunicação, ancorada na função de mediação. Com base em pesquisa empirica qualitativa que analisou os efeitos de programas eleitorais de televisão em 2016, na cidade de Goiânia, estado de Goiás, e com algumas inferências sobre a eleição presidencial de 2014, no Brasil, o artigo aponta um dispositivo comunicacional em funcionamento e identifica um elemento ativador, um marco inicial, a partir do que se pode reconhecer uma produção simbólica em circulação, indicando um recorte para a extensão do dispositivo em relação aos vetores envolvidos.
ABSTRACT
This paper discusses the interactional device, pointing out its amplitude as a construction capable of helping the analysis of communicative episodes and, at the same time, affirming a composition for the device that includes, among its elements, one that is its activator and starting point for its demarcation. About the scope of the instrument, the paper presents the advantages of the notion of interactional or communicational device, in relation to the idea/concept in force in the traditional models of communication analysis, anchored in the mediation function. Based on qualitative empirical research that analyzed the effects of the electoral television programs in 2016, in the city of Goiânia, Goiás state, and with some inferences about the 2014 presidential election in Brazil, the paper points to a working communication device and identifies an activating element, an initial milestone, from which a circulating symbolic production can be recognized, indicating a cutout for the extension of the device in relation to the vectors involved.
RESUMEN
Este artículo procura discutir un dispositivo interinstitucional, declarando su amplitud como una construcción capaz de ayudar a analizar los episodios de comunicación al mismo que afirma una composición para un dispositivo que incluye, entre sus elementos, un activador de sema y un punto de partida para su demarcación. En cuanto al alcance del instrumento, el artículo presenta las ventajas de la noción de interacción del dispositivo comunicacional, en relación a la ideología y a la coherencia vigentes en los modelos tradicionales de análisis de la comunicación, anclados en la función de mediación. Cualitativa que analizó los efectos de los programas de televisión electorales en 2016 en la ciudad de Goiânia, Goiás, y con algunas inferencias sobre una elección presidencial de 2014, no en Brasil, o sobre un dispositivo de comunicación funcional identifica un elemento desencadenador, una estructura inicial, a partir de la cual es posible reconocer una producción simbólica en circulación, indicando un corte para una extensión del dispositivo en relación a los vectores involucrados.
PALABRAS CLAVE: programa electoral, dispositivo comunicacional de interacción, activación.
INTRODUÇÃO
Um dispositivo interacional pode ser criado? E, se puder, o que lhe dá a partida? Essas são as questões que especificam este trabalho, cujo objetivo fundamental é estabelecer a situação comunicacional como um “espaço de observação” e o dispositivo interacional (Braga, 2011a) –que chamaremos aqui também de comunicacional (Signates, 2015)– como um modo privilegiado de visualizá-la.
Um olhar inicial, lançado sobre as alternativas de uso abertas com o dispositivo interacional, quando ampliado, seguindo as próprias teorizações de Braga, revela outras possibilidades. Em termos hipotéticos, este trabalho vincula a ideia de que o dispositivo pode, sim, ser criado ou, quando se trata de aproveitar uma matriz já existente, pode ser ativado ao se aproveitar determinado aspecto de um instrumento comunicacional, podendo também, como consequência, ativar/provocar a formação de um “circuito” comunicacional (Braga, 2012).
Em texto mais recente, Braga (2017) articula com grande clareza as noções de circulação, dispositivo interacional e circuito. Segundo ele,
O processo de circulação não exige que o vínculo entre um episódio e outro, anterior ou subsequente, seja desenhado e constituído ad-hoc a cada processo de passagem. A sociedade elabora (sempre através de tentativas comunicacionais de criação, de ajuste e de aperfeiçoamento) processos mais ou menos reiterados de conexão e de tensionamento entre diferentes tipos de episódios – desenvolvendo assim lógicas articuladoras entre os dispositivos interacionais. Essa reiteração de conexões entre diferentes dispositivos interacionais acaba se caracterizando como um circuito, que passa a direcionar explicitamente o fluxo comunicacional adiante, em determinadas condições contextuais. As expectativas de passagem entre episódios, na medida em que fazem reforçar as tentativas mais bem-sucedidas (na visada dos participantes) acabam por estabilizar e dar forma ao circuito, e por repassar indicativos aos próprios dispositivos interacionais. (Braga, 2017, p. 44).
Tanto a noção de circuito, quanto a de dispositivo, constituem, nas teorizações contemporâneas no campo da comunicação no Brasil, como elementos de um processo sócio-técnico mais amplo, o da midiatização. E é nesse contexto que emerge a indagação fundante neste trabalho, cujo desenvolvimento minucioso se iniciou anteriormente (Campos, 2017).
Este trabalho percorre um caminho de discussão teórica e conceitual a partir de relatos empíricos colhidos nas eleições de 2016, na cidade de Goiânia, capital brasileira do Estado de Goiás, com algumas inferências sobre a eleição de 2014, no Brasil. Em princípio, faz-se uma breve varredura nos conceitos de midiatização e dispositivos, para, em seguida, introduzir os relatos empíricos da pesquisa feita, demonstrando, em seguida, as conclusões teóricas pertinentes aos resultados obtidos, pela identificação do princípio de ativação de dispositivos comunicacionais.
MIDIATIZAÇÃO E DISPOSITIVOS
A noção de dispositivo está articulada a uma concepção teórica mais ampla, a das sociedades em midiatização, abordagem que desenvolve contribuições bastante específicas para as teorias da comunicação. “O dispositivo não é meio, nem mensagem. É um lugar de inscrição que se transforma em operador de novas condições de produção e de recepção, e, ao mesmo tempo, passagem e meio” (Ferreira, 2013, p. 147).
A midiatização é o contexto comunicacional dentro do qual os dispositivos são ativados. O processo de circulação de sentidos acionado pelo dispositivo interacional é inteiramente urdido ao modo da midiatização. Em Braga, a midiatização é o contexto empírico ideal para os estudos do comunicacional. É o âmbito social onde a comunicação faz circular todos os sentidos, nas sociedades contemporâneas.
Antes de uma aproximação direta do que aponta Braga (2011b), sobre dispositivos interacionais, é preciso pensar nas razões pelas quais este autor escolhe as palavras que compõem esta articulação. A noção de dispositivo é decisiva, no sentido de uma dada flexibilidade que possui, como um arranjo decorrente dos processos envolvidos, e que está sujeito a mudanças, diferente de conceitos de índole determinista, como, por exemplo, o de “estrutura”. Se o conceito fosse o de estruturas interacionais –o que de fato não é–, estaria se falando de condições supostamente estabilizadas, institucionalizadas ou de difícil transformação, relativa ou fortemente inflexíveis diante das circunstâncias ou contextos sociais e históricos.
A introdução deste conceito nos estudos de comunicação proporciona um avanço na teorização apresentada por outros autores de larga influência no campo, como Thompson (1998), por exemplo, cujo pensamento sugere, na experiência quotidiana de cada sujeito, uma interferência e um enfraquecimento da conexão local de cada indivíduo, por conta das presença de “redes de comunicação mediada”, que o alimentariam com materiais de natureza simbólica distantes, alienados de sua realidade imediata. Por outro lado, este autor admite haver também uma possibilidade de enriquecimento do indivíduo, exatamente pelo fato de que ele agora pode se distanciar “dos imediatos locais de sua vida diária” (1998, pp. 184 e 185). Importante observar, neste autor, como a noção de “mediação”, emprestada às tecnologias, constitui vínculos significativos, capazes de enriquecer ou empobrecer as relações sociais.
Em contrapartida, com a contribuição de Braga, a noção de dispositivos interacionais, produzidos dentro de circunstâncias comunicacionais, não mais se refere a “meios” que eventualmente desconectem os sujeitos de seus lugares ou os acumulem com bombardeios de material simbólico, exatamente porque permitam essa desconexão. A categoria dispositivo permite ao analista que não se perca entre estas duas possibilidades, mesmo que reconheçam que de fato existam, mas dentro de uma singularidade de que não são definitivas para a produção comunicacional do sentido. Os dispositivos desnudam a fragilidade do engessamento promovido pela ideia de mediação, em comunicação (Signates, 2006).
Destarte, a referência se transfere para a constatação de micro-redes que são provocadas, estabelecem-se e podem ser observadas como dispositivos interacionais, em que o resultado não é apenas mediação, mas uma transformação produzida pelos próprios episódios interacionais em circulação, com suas circunstâncias, e em cuja processualidade os sujeitos estão integrados e são coprodutores, razão pela qual essas micro-redes integram o dispositivo e nessa condição aproveitam-se do que há disponível nas circunstâncias sociais dadas. O dispositivo interacional, assim, é um recorte de uma micro-rede que funciona até o ponto de uma fratura surgida a qualquer momento, uma quebra de continuidade naquela circulação e naquela produção de sentido, formando-se outros encadeamentos, em outras direções. Ele também é uma articulação que se apresenta como forma de melhor apontar as circunstâncias comunicacionais sem restringi-las nem ao limitado âmbito técnico-eletrônico, nem a uma obrigatoriedade de audiência de massa.
Os dispositivos, em Braga, não são, contudo, algo como “estruturas” ou, menos ainda, “instituições”: constituem-se articulações interacionais, na medida em que “envolvem grande variedade de circunstâncias, processos, participantes, objetivos e encaminhamentos (...) são frequentemente tomadas como determinadas por processos sociais mais amplos, no âmbito dos quais se desenvolvem” (Braga, 2011b, pp. 4 e 5). Para esta variedade de circunstâncias de interações, o autor propõe a existência de “lugares de observação”:
Cada episódio comunicacional, na sua prática de fenômeno em ação, recorre a determinadas matrizes interacionais e modos práticos compartilhados para fazer avançar a interação. Tais matrizes –culturalmente disponíveis no ambiente social (e em constante reelaboração e invenção)– correspondem ao que chamamos aqui de ‘dispositivos interacionais’. (Braga, 2011b, p. 5)
No sentido do que aponta Braga, os meios de comunicação tradicionalmente conhecidos, muitas vezes ligados aos seus suportes eletrônicos, deixam de ser elementos únicos no desenrolar do processo comunicacional, que envolverá sempre uma variedade de circunstâncias. Para ampliar esse olhar, o autor propõe um conceito complementar, o de matrizes comunicacionais, “socialmente elaboradas e em constante reelaboração, que de um modo ou de outro a sociedade aciona para poder interagir” (Braga, 2011b, p. 8).
As matrizes comunicacionais podem ganhar maior ou menor relevância, dependendo da articulação das circunstâncias que envolvem os sujeitos participantes, os modos práticos compartilhados por eles, e outras referências, como instituições religiosas, políticas ou sindicais, ou ocorrências menos formalizadas, como grupos de amigos e relações familiares. Tais matrizes compõem então todas estas possibilidades de interação e comunicação. Não são, portanto, apenas os meios tecnológicos capazes de atingir grandes audiências.
A compreensão de que apenas pelos meios de comunicação e alguns espaços institucionalizados poderiam se formar estes “lugares de observação”, pode ser agora superada, e analisada de maneira muito mais ampla, considerando a diversidade em ação nos processos interacionais:
Podemos então considerar que ‘dispositivos de interação’ são espaços e modos de uso, não apenas caracterizados por regras institucionais ou pelas tecnologias acionadas; mas também pelas estratégias, pelo ensaio-e-erro, pelos agenciamentos táticos locais – em suma – pelos processos específicos da experiência vivida e das práticas sociais (Braga, 2011b, p. 11).
Os contextos específicos e as situações históricas de participantes de episódios interacionais acabam por produzir os dispositivos interacionais, segundo Braga (2011b, p. 6), por meio de padrões de funcionamento de processos sociais que são gerados por tentativas e práticas de processamento de situações sociais. Os dispositivos interacionais se tornam, assim, ambientes de articulação que podem ser acionados pelos participantes sociais, que têm espaço para exercerem as suas estratégias:
Na sucessão de tentativas, os dispositivos interacionais (como matrizes acionadas nas interações) são gerados, desenvolvidos, mantidos, transformados pelos próprios episódios interacionais que põem em ação as matrizes, por suas táticas e inferências para a probabilidade de obtenção de resultados (Braga, 2011b, p. 6).
Um exemplo interessante para se entender o que Braga denomina um “espaço de observação”, para identificar um dispositivo interacional, seria o dispositivo “mesa de bar”. Uma cena comum do cotidiano estabelece condições comunicacionais específicas que revelam o modo de funcionamento do dispositivo, conforme o autor. “Mesa de bar”, neste caso, é uma matriz interacional, que delimita, que sofre a intervenção e a interação de vetores envolvidos, e que ao mesmo tempo produz intervenção e/ou interação, de outros vetores. São, por exemplo, as pessoas em torno da mesa de bar e seus contextos, como o contexto geográfico e histórico deste bar onde está esta mesa. Para Braga, contudo, a noção de dispositivos interacionais possui um caráter mais heurístico e metodológico, do que propriamente teórico, isto é, com esse conceito, ele pretende muito mais evidenciar situações comunicacionais para o estudo e a exploração inovadora dos processos de circulação simbólica, do que descrever realidades ou estabelecer padrões teóricos. Em Braga, a heurística da indagação é muito mais relevante do que a produção de sistemas explicativos ou descritivos.
Nessa linha, Signates (2015) aponta para a possibilidade de que os dispositivos interacionais sejam um caminho produtivo para uma teorização autônoma da comunicação. Crítico, como Braga, da exogenia e da dispersão com que o campo da comunicação articulou suas diferentes teorizações, Signates enxerga na categoria foucaultiana do dispositivo, retrabalhada por Braga, uma possibilidade de conferir visibilidade epistêmica para o objeto da comunicação. Nesse sentido, este autor considera que o dispositivo interacional (que ele prefere denominar como “dispositivo comunicacional”) constitui uma nova categoria de análise, a partir da qual se torna possível fazer recortes dos processos comunicacionais, em sua dinâmica de produção e circulação de sentidos, superando assim a noção de mediação, que submete e delimita a identificação do que é comunicacional a dicotomias pouco produtivas para estabelecer o fenômeno.
Usada como categoria, a noção de mediação leva o pesquisador simplesmente à busca pela identificação dos conteúdos simbólicos que estariam servindo de suporte aos processos de produção de sentido, pois o modo pelo qual isso acontece estaria já pressuposto como uma mediação. (Signates, 2015, pp. 150 e 151)
Dispositivo é então uma categoria que difere da noção de mediação, porque não pressupõe realidades dicotômicas. A ideia de dispositivo avança onde a ideia de mediação destacava apenas a ligação entre realidades distintas (Signates, 2006; 2015; Braga, 2012).
O que a noção de dispositivo pressupõe seria apenas a relação entre hetoregeneidades, deixando à pesquisa a tarefa de compreendê-la e descrevê-la como comunicação, assumindo desde o princípio que nenhum dispositivo coincide com outro nos diferentes contextos em que ocorre –ao contrário, o que o dispositivo possibilita é justamente a emergência do novo, do inesperado, da comunicação como alteridade aberta. (Signates, 2015, p. 151)
A questão que este trabalho busca acrescentar a essa linha de pensamento diz respeito a uma crítica ao que talvez pudéssemos inferir como sendo uma espécie de “teoria da geração espontânea” dos dispositivos comunicacionais. Em outras palavras, como nascem os dispositivos? Há algo que os inicie, que possa ser identificado teoricamente e/ou empiricamente descrito? A abordagem dessa busca exige, evidentemente, um olhar percuciente sobre o mundo, de caráter indutivo e, quiçá, abdutivo, evitando as limitações de uma apreensão meramente dedutiva.
O DISPOSITIVO E O MÉTODO DE ANÁLISE ELEITORAL
O contexto eleitoral constitui uma situação comunicacional privilegiada, na vida de uma sociedade. Processos específicos são ativados, envolvendo todo o eleitorado de um país, culminando numa ação decisória fundamental para a manutenção e a reprodução dos ritos democráticos, num percurso inteiramente comunicacional que estabelece e transforma as relações entre o Estado e a sociedade civil. A relevância, a natureza e o grau de envolvimento dos indivíduos e instituições nas dinâmicas eleitorais fazem desse fenômeno um ambiente especial e específico para o estudo da comunicação, razão que decorreu na escolha das eleições de 2016, na cidade de Goiânia, capital de Goiás, no Brasil. Em alguns momentos, utilizou-se também inferências adicionais, resultantes de informação jornalística, sobre as eleições presidenciais brasileiras de 2014.
Nessa condição considerou-se, para efeito da justaposição teórica dos conceitos ao corpus empírico, que o processo eleitoral na cidade constituiu um circuito comunicacional complexo e optou-se pelo estudo do Horário Gratuito de Propaganda Eleitoral (HGPE), como sendo o espaço de observação do dispositivo comunicacional em estudo. Nesse sentido, a televisão não é o dispositivo, e sim o programa eleitoral, posicionado dentro da programação televisiva.
A plataforma televisão foi escolhida por seu efeito mais abrangente, do ponto de vista da audiência, e seu grau de confiabilidade segundo o público –a TV perde apenas para o jornal no quesito confiança, mas suas audiências são incomparáveis (Albuquerque, 2004). Um dos mais recentes levantamentos de consumo de mídia feitos no Brasil (Secom, 2015), indicou que 95% dos brasileiros veem televisão, sendo que a TV aberta, aquela que chega a todos os lares gratuitamente e que obedece, obrigatoriamente, à legislação eleitoral –na transmissão dos programas eleitorais–, está presente em 91% dos lares nacionais (Secom, 2014).
Comparando com outros meios, o rádio vinha em segundo lugar, com 55% dos entrevistados declarando ouvir rádio, e a internet, em terceiro: 48% declararam usar a rede mundial. No quesito confiança, 58% confiavam muito ou sempre nas informações de jornais, a televisão aparecia em segundo lugar, com 54%, e o rádio, em terceiro, com 52%. Na internet é o nível de desconfiança que se mostrou muito alto: 71% confiavam pouco ou nada nas notícias postadas nas redes sociais; 69% demonstravam a mesma desconfiança em relação aos blogs e 67% em relação aos sites. A internet ainda estava por conquistar a sua credibilidade (Secom, 2015).
O estudo da produção de sentidos operada a partir do dispositivo comunicacional em pesquisa foi feito pelo uso do método de entrevistas qualitativas em profundidade. Para isso, foram selecionados eleitores com idade de 18 anos ou mais, divididos em dois grupos de entrevistados, o primeiro, cujas pessoas foram entrevistadas antes e, o segundo grupo, depois de iniciado o horário eleitoral na TV. Os grupos foram divididos ao meio entre participantes dos dois sexos, obedecendo a uma aproximação dos levantamentos do IBGE para Goiânia, e o recrutamento foi realizado de maneira aleatória, em diferentes pontos da cidade.
O objetivo era determinar a formação das imagens públicas após os programas eleitorais de primeiro turno, junto aos eleitores conectados ao HGPE transmitido. A sessão de entrevistas anterior à exibição do programa visou obter a percepção do eleitor fora do contexto de interferência simbólica do horário eleitoral gratuito. Isso feito, efetuou-se nova bateria de debates em seguida à exibição do programa, visando detectar a reação do eleitor aos programas eleitorais, numa comparação com os sentidos verificados antes dessa afetação.
Nas entrevistas também se buscou rastrear o caminho percorrido pela informação que sustentava a decisão do voto nos contextos do eleitor. A questão que permeava os eixos do trabalho estava em encontrar os elementos de percepção que mudaram, ou que se confirmaram, no processo de produção de sentido, pelo eleitor, para definição da imagem pública dos candidatos, e investigar, por direto questionamento ao eleitor, as fontes que ele integrou para absorver, construir e/ou propagar o material simbólico.
A análise de conteúdo do material obtido utilizou os critérios de praxe, de categorização (Bardin, 2019) e, em seguida, de interpretação dos dados categorizados, sendo esta etapa trabalhada a partir de três indicadores de análise (Signates, 2019): a) regularidade, ou o registro dos sentidos frequentes nos dados; b) discrepância, ou os elementos contraditórios ou díspares dos dados entre si; e c) intensidade, ou o relato das ênfases constatadas, as emoções demonstradas e os sinais gestuais percebidos, a partir dos comportamentos e sinalizações impressos pelos próprios entrevistados aos dados fornecidos.
UM DISPOSITIVO COMUNICACIONAL NAS ELEIÇÕES DE 20141
Para este registro foi feito um recorte dos fatos a partir da morte do candidato Eduardo Campos (PSB), em trágico acidente, no dia 13 de agosto de 2014, que mudaria a cena política que até aquele momento era registrada pelo instituto Datafolha (Datafolha, 2014). O recorte também acompanhou a estratégia da candidata vitoriosa naquele pleito, diante das várias ameaças de derrota. Neste marco inicial, Dilma Rousseff (PT) liderava o processo na preferência do eleitorado, com 35% das intenções de voto, contra 20% de Aécio Neves (PSDB) e 8% do próprio Eduardo Campos (PSB).
Aquela morte de Campos recolocaria imediatamente na cena a nova candidata do PSB, Marina Silva, que apareceu em segundo lugar já no levantamento feito nos dias 15 e 16 de agosto. Dilma, à frente, mantinha 36%, contra 21% de Marina e 20% de Aécio, agora o terceiro colocado. O reposicionamento de Marina Silva na cena se tornou então o cenário de largada dos programas do HGPE, que se iniciariam em 19 de agosto naquele ano.
O movimento indicando o crescimento de Marina, fora provocado por algo anterior ao horário eleitoral, e que não fora objeto de nossa observação. A continuidade deste processo é de onde se iniciou a observação: o crescimento de Marina, a queda de Aécio e a estagnação de Dilma, apesar da liderança, durou até o final de agosto. Decorridos dez dias do início dos programas eleitorais, também pelo Datafolha, foi registrado o primeiro empate técnico daquela campanha. A pesquisa (feita nos dias 15 e 16 de julho de 2014) indicou as duas candidatas empatadas, com 34%, enquanto o tucano Aécio caía para 15% (Datafolha, 2014).
Nesse momento, a campanha de Dilma tomou uma decisão estratégica, divulgada pelos jornais, e que teve como principal tática as suas ações comunicacionais, que podem ser observadas olhando-se para este lugar que é o horário eleitoral, fundamentalmente na televisão. A sua coordenação da campanha, baseada em pesquisas projetadas para o segundo turno, decidiu que preferia ter Aécio como adversário. Isso também foi amplamente divulgado. Marina começava a abrir vantagem nos levantamentos de segundo turno –nesta pesquisa (feita nos dias 28 e 29 de agosto de 2014), ela passaria a ter 50% contra 40% de Dilma, ficando os outros 10% entre brancos, nulos e aqueles que não tinham uma definição (Datafolha, 2014).
A estratégia de ataques a Marina, ostensivamente, começaria no início de setembro pelo HGPE e com repercussão nas redes sociais e em outros mecanismos da comunicação da campanha, incluindo os debates. A decisão de ataque a uma candidata foi política, mas sua tática foi toda ela comunicacional. O horário eleitoral funcionou como uma espécie de disparador de produção de novos sentidos, dentro de uma possibilidade de vários recortes ao longo das eleições.
Foi digna de nota a rapidez do processo: depois de vinte dias de críticas diretas, Marina entraria em queda das preferências eleitorais, constatada em 18 e 19 de setembro, segundo o Datafolha, enquanto se formava uma escalada inicialmente lenta, de Dilma e Aécio. Nesta data, a pesquisa apontava: Dilma com 37%, Marina com 30% e Aécio com 17%. Dilma e Marina deixavam aí de estar em situação de empate técnico. Este processo seguiria até a eleição, em primeiro turno, no dia 5 de outubro. O resultado da votação traria Dilma com 41,59% dos votos válidos, Aécio com 33,55%, e Marina com 21, 32%.
Embora vencedora do primeiro turno, Dilma enfrentaria de cara uma nova situação. Ao escolher o alvo, deixou ‘sem combate’ o crescimento de Aécio, num momento em que outro fenômeno crescia no cenário do país: a Operação Lavajato, nome dado à operação coordenada a partir de março de 2014 por uma força tarefa do Ministério Público Federal em Curitiba, que investigava desvios de recursos em negócios de empreiteiras, doleiros e funcionários da Petrobrás, uma das maiores empresas do mundo, estatal que monopoliza a exploração e o refino do Petróleo brasileiro. A processualidade jurídica da Operação, à época, ficava a cargo do Juiz Federal Sérgio Moro, da Vara Criminal de Curitiba, no estado do Paraná. Os resultados políticos desta operação são hoje de amplo conhecimento: o juiz Moro condenaria o ex-presidente Lula, que, após brevíssima confirmação pela segunda instância, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, sediado em Porto Alegre – RS, seria aprisionado e, enquadrado na Lei da Ficha Limpa, impedido de concorrer às eleições presidenciais de 2018, na qual era, conforme todas as pesquisas eleitorais da época, o candidato favorito, no que resultou na vitória do ex-capitão e deputado federal Jair Messias Bolsonaro, do qual o juiz Sérgio Moro se tornaria o Ministro da Justiça.
Desde o início, a Operação Lavajato traria desgastes para o governo, razão pela qual, no início do segundo turno das eleições de 2014 em estudo, na primeira pesquisa Datafolha, realizada em 8 e 9 de outubro, Aécio já aparecia em primeiro lugar, com 46%, contra 44%, o que, considerada a margem de erro da sondagem, caracterizava um empate técnico. Em dez dias haveria já a inversão desses números, que permaneceriam até a data do pleito de segundo turno. No levantamento de 20 de outubro do Instituto Datafolha, Dilma aparecia com 46%, contra 44% de Aécio. Mais uma vez houve uma estratégia comunicacional que estancou e desfez aquela virada e envolveu algumas pilastras evidenciadas nos programas eleitorais.
Tudo indica também que foram a estratégia e o discurso político que ela carregou, disparados pelo HGPE, que levaram Dilma Rousseff à vitória em 25 de outubro, com 51,64% dos votos válidos, contra 48,36% de Aécio Neves, mesmo considerando o desejo de mudança – desde o primeiro levantamento Datafolha utilizado nesta investigação, nunca menos do que 71% dos eleitores gostariam de um governo muito ou totalmente diferente do que estava sendo concluído naquele ano, pela própria candidata à reeleição.
Os resultados vieram: Dilma foi eleita. Ela tinha 43% de rejeição no início do segundo turno e terminaria com 38%, enquanto Aécio, que tinha 34% de rejeição lá no início do segundo turno, terminaria com 41%, conforme dados das pesquisas realizadas pelo Datafolha nos dias 8 e 9 de outubro e 24 e 25 de outubro de 2014 (Datafolha, 2014).
Uma importante constatação foi a de que, num país onde, na hora do voto, 72% dos eleitores desejavam mudanças significativas –de acordo com pesquisa realizada nos dias 24 e 25 de outubro de 2014–, nas políticas nacionais venceu a continuidade, sob a embalagem de “governo novo, ideias novas”, no enquadramento do desejo da mudança (Datafolha, 2014).
O DISPOSITIVO NAS ELEIÇÕES DE GOIÂNIA EM 20162
Nos dois grupos de entrevistados apresentou-se, com destaque, a percepção da importância dos programas eleitorais na televisão, na comparação com outras matrizes que surgiram nas entrevistas. Para o eleitor goianiense, outros mecanismos que estiveram à sua disposição compunham um grupo de matrizes influenciadoras do voto, mas com menor impacto, se vistas de maneira isolada, do que o HGPE na televisão. Foi o caso de elementos de influência no voto como amigos e família, redes sociais e internet (portais e blogs), debates3, e ainda, em menor escala, o horário eleitoral no rádio, e instituições, como as igrejas e os partidos políticos.
Uma presença marcante nos levantamentos: a propensão do eleitor de buscar muitas fontes de comunicação, de entrelaçar matrizes, espontaneamente, para formar a sua percepção e definir o seu voto. Mais do que a grande influência do HGPE na televisão, o que apareceu foi a tendência de integrar e convergir, o que leva a pensar que um eleitor, surpreendido individualmente, é um elemento de integração de dispositivos interacionais ou, no mínimo, de algum ativador de dispositivo. Espontaneamente, o eleitor, como cidadão, forma as suas redes próprias e relativamente autônomas, integrando assim dispositivos comunicacionais que lhes estejam ao alcance.
O eleitor demonstrou que se organiza, se orienta e estabelece o seu voto formando micros e macros-rede de comunicação. Trata-se de uma atitude rotineira, de um mundo coletivo estabelecido pela comunicação, produzindo uma elaboração de discurso (Thompson, 1998), pela interferência dos contextos envolvidos uns nos outros. As declarações dos entrevistados não deixam dúvida:
- Amigos e familiares influenciam bastante na decisão da maioria, mas as redes sociais e os vídeos e debates são decisivos – no horário eleitoral e no noticiário da televisão -, porque sabemos melhor suas propostas e podemos debater com os pré-candidatos. (Entrevistado do Grupo 1)
O depoente deixou claro que ele não cria as suas redes de uma hora para outra: ele funciona em rede. Estas redes estão lá sempre e são alimentadas por várias fontes e por isso, para ativá-las, num determinado sentido temático, é preciso que se movimente algum mecanismo de entrada numa rede entre tantas. O ponto de entrada pode ser uma matriz qualquer, desde que ela seja capaz de permitir um episódio comunicacional. A pesquisa indicou, pela produção simbólica ocorrida, que o programa eleitoral de televisão ocupou mesmo este lugar.
Muitas alterações aconteceram significativamente na comparação entre os grupos de entrevistados. Desde coisas simples, como a disposição para falar de eleição, até o nível de conhecimento sobre os candidatos e especialmente suas propostas. Muita coisa mudou qualitativamente com o processo disparado depois do HGPE na televisão. As opiniões qualitativas espontâneas trouxeram alterações muito relevantes na percepção apresentada.
Houve candidatos que eram muito desconhecidos e passaram a ser muito conhecidos, e passaram a ter conceitos, positivos ou negativos, a eles atribuídos. Houve candidatos que exibiam conceitos predominantemente positivos, que, após o HGPE, tornaram-se negativos. E as propostas passaram a ser discutidas como se o horário eleitoral tivesse aberto a temporada de debate sobre a própria eleição. Houve candidato que permaneceu com a mesma imagem pública anterior, mas ela foi intensamente debatida e fortalecida negativa ou positivamente. No grupo que assistiu aos programas eleitorais houve um desenvolvimento de opiniões muito intenso, que quase não havia no primeiro grupo.
O tempo dos programas de televisão apresentou relação direta com o nível de conhecimento entre os candidatos e de formação da imagem pública. No caso de Adriana Accorsi –delegada, deputada estadual, filha de um ex-prefeito popular, do Partido dos Trabalhadores (PT)–, por exemplo, emergiu uma imagem dividida, entre a delegada, de cunho positivo, e a militante do PT, de cunho negativo. Este fato, totalmente em sintonia com o contexto nacional anticorrupção, atrapalhou imensamente a candidata em sua trajetória. São fatores de interferência, vetores de toda uma conjuntura que compõe na produção de imagem e em sua circulação.
Vanderlan Cardoso –ex-candidato ao governo do Estado, prefeito bem sucedido a cidade da região metropolitana, lançado pela base política do governo estadual–, manteve na imagem pública, de aspecto positivo, ligada ao trabalho realizado no município de Senador Canedo-GO, quando foi prefeito. Mas a avaliação negativa cresceu, no segundo grupo, apontando aquilo que seria um grande problema a ser enfrentado pela campanha do candidato: o envolvimento com o então governador Marconi Perillo. Vanderlan era chamado pelos entrevistados como “testa de ferro” (Entrevistado do Grupo 2).
A revelação da relação de Vanderlan com o então governador Marconi foi feita muito antes do horário eleitoral, inclusive registrada nas convenções partidárias e coberturas jornalísticas destas, mas não havia ainda alcançado o conhecimento do grande público, ou principalmente, a atenção e o interesse dele: não havia sido provocada ainda uma discussão pública sobre o fato –isso mostra que aparentemente o jornalismo neste caso não funcionou como o disparador de um processo comunicacional.
Uma campanha adversária, a de Iris Rezende, chegou mesmo a produzir comerciais que simulavam o candidato Vanderlan anunciando uma atuação conjunta com o governador Marconi Perillo. Foi uma forma diretíssima de ligá-los e, ao mesmo tempo, inteligente, porque deixava o adversário sem ação quanto a negar um fato que era uma realidade já apresentada à sociedade, embora ainda não estivesse consolidada como informação apreendida pela população. O comercial na TV, com uma sequência de imagens de Vanderan e Marconi Perillo, apócrifo, dizia assim:
- Vanderlan e Marconi estão juntos para resolver os problemas de Goiânia. Vão resolver a crise da segurança. Vanderlan e Marconi estão juntos para administrar e resolver os problemas do funcionalismo. Vanderlan e Marconi estão juntos para que os serviços públicos funcionem. Vanderlan e Marconi estão juntos por Goiânia.
A estratégia instigou aquele que estava então diante da televisão, o eleitor, no turbilhão da propaganda eleitoral, a se dar conta do fato. A produção de sentido daí em diante parece ter sido uma consequência.
As referências às propostas dos candidatos e suas ideias, e até às críticas entre eles, que quase inexistiram no primeiro grupo de entrevistados, cresceram de maneira significativa no segundo grupo. As frases sobre propostas dos candidatos demonstraram isso:
- Pra mim o projeto dela para alcançar crianças e adolescentes é bom. (Entrevistado do Grupo 2)
- É outro também, com umas propostas mirabolantes, umas propostas que você sabe que num tem lógica, que a pessoa nem sabe do que ela está falando. (Entrevistado do Grupo 2)
- (...) pelo que a gente vê nas propagandas eleitorais, nas propagandas gratuitas que tem, essas coisas assim, não tá legal porque ele só sabe ofender e usar de má fé para retrucar os outros candidatos, só sabe pegar o podre dos outros candidatos e jogar na mídia pra poder ganhar voto pra ele, isso aí pra mim não é coisa de honestidade pra se fazer. (Entrevistado do Grupo 2)
- Eu vi várias propostas na área da educação… e eu gostei das propostas dele pra educação. (Entrevistado do Grupo 2)
Estas e outras afirmações mostraram que houve, a partir do horário eleitoral, uma intensa produção simbólica. Antes disso, todas as matrizes comunicacionais que apareceram espontaneamente na pesquisa, e também outras não citadas, já estavam disponíveis para os candidatos e acessíveis ao cidadão, exceto os programas eleitorais de rádio e televisão, e alguns espaços de audiência significativamente menor, também definidos pela legislação eleitoral, como envelopamento de comitês e comunicações out of home.
Não foi objetivo desta pesquisa avaliar a dimensão da penetração de outras matrizes comunicacionais no funcionamento do dispositivo interacional, mas aquelas que a opinião dos entrevistados colocou em relativa condição de influenciar o voto, não fizeram o debate eleitoral aprofundar, no processo da formação da imagem dos candidatos. Isto restou claro na pesquisa aqui apresentada, comparando os resultados dos grupos de entrevistados.
Aí está então uma grande diferença entre o programa do HGPE na televisão e outras matrizes: o dispositivo HGPE ativou significativamente este processo de formação de imagem. E provocou o acionar de uma rede de matrizes, segundo os contextos de cada eleitor, como nos contaram os próprios eleitores. Este processo demonstra um dispositivo interacional em funcionamento, sendo ativado e ativando, digamos assim, redes de dispositivos: a cadeia de dispositivos interacionais formando o “circuito”.
MAIS VETORES: TEXTO E O CONTEXTO SOBRE A IMAGEM VENCEDORA
A imagem pública do candidato vitorioso revelou elementos que mostram os vetores de um dispositivo interacional/comunicacional. Com semelhante intensidade os entrevistados desvelaram uma consistente imagem positiva formada do candidato, como realizador e vinculado às camadas populares, nos dois grupos de entrevistados e uma, também consistente, imagem negativa. O conceito negativo de Iris Rezende, ligado à velha política, à forma envelhecida de conduzir processos políticos, esteve presente nos dois grupos, com citações do tipo:
- Representa a política tradicional, anacrônica, sem lugar nos dias de hoje. (Entrevistado do Grupo 1)
- Dinossauro, populista, fora do tempo… (Entrevistado do grupo 2)
Merece a atenção o predomínio de uma imagem ambivalente, inclusive no segundo grupo, mas prevalecendo o viés positivo, como comprovou o resultado da eleição, e as falas dos entrevistados:
- Pelo que eu lembro dele como prefeito, pelo menos aqui pra nossa região, ele faz muito né? Casa própria dando para os mais carentes, asfalto. (Entrevistado do Grupo 2)
- Ele é muito trabalhador né? Da outra vez ele pegou e fez os ônibus funcionar. Pegou os ônibus que era só carcaça de ônibus e fez o povo trocar né? Isso pra nós já é um grande motivo. E outra coisa, cuidar bem de Goiânia… ele cuida bem. (Entrevistado do Grupo 2)
Observar a partir de um dispositivo interacional é observar os vetores que o integram. No caso de Goiânia, um deles, o principal talvez, em 2016, estava na expectativa da cidade para o próximo gestor. A pesquisa mostrou que este contexto pode ser o elemento que fez a imagem pública de Iris Rezende, na sua parcela positiva, predominar em relação a outros aspectos, possibilitando a vitória eleitoral.
A pesquisa indicou ainda que foram decisivas na avaliação qualitativa de Iris Rezende características em sintonia com a ideia de prefeito ideal, e em contraponto direto com a avaliação negativa feita da administração e do prefeito Paulo Garcia, que deixaria o cargo para o eleito assumir. “Péssima” foi a palavra-chave predominante para expressar o sentimento dos entrevistados, sobre a administração municipal. Um sentimento de quase todos os participantes. Em ambos os grupos de entrevistados. As citações evidenciaram sentimento de incompetência da gestão, de falta de serviços, de obras inconclusas, de “bagunça” em várias áreas e de irresponsabilidade, como nas frases abaixo sobre a gestão que se encerrava:
- Simplesmente péssima. Porque a saúde, o transporte, a limpeza de Goiânia, praticamente tá calamidade pública. (Entrevistado do Grupo 1).
- Acho que está muito a desejar né? Tá muito bagunçado (...) Tem muita coisa a desejar (...) saúde (...) segurança (...) nossa, tá um caos (...) os cuidados da saúde com a população está muito a desejar. Infelizmente eu acho que está muito (...) tudo muito ruim. Tudo largado. (Entrevistado do Grupo 2)
- Péssima. Porque está deixando muito a desejar, principalmente a saúde, a educação (...) tá um caos que a gente vai nos CAIS aí e sai de lá contrariado, revoltado, com tanta gente nos corredores, sem uma administração justa, que o povo precisa e merece. (Entrevistado do Grupo 2)
Percebeu-se um sentimento de abandono no encadeamento dos serviços públicos, e uma indiferença quanto ao que fosse responsabilidade estadual ou municipal. O sentimento era de que os serviços estavam sem o comando de uma gestão do município:
- Por enquanto eu vejo que não está boa (a administração municipal). Eu já fui assaltada duas vezes. Na rua da minha casa, no meu setor. Liga pra polícia, não adianta nada. O meu pai precisa de uma consulta, porque ele tem trombose, eu não consigo porque o posto de saúde não tem médico. O meu pré-natal eu tenho que fazer com a enfermeira, no posto de saúde, porque não tem médico, e eu tenho que fazer o pré-natal na maternidade Nascer Cidadão, porque só lá tem médico, eu tenho que ir só na emergência lá. Eu fico fazendo com a enfermeira e pelo menos uma vez por mês eu tenho que ir lá, porque no posto de saúde não tem médico, então está difícil. Tá uma verdadeira calamidade. (Entrevistado do Grupo 2)
O mesmo sentimento, e não poderia ser diferente, se repetia na avaliação do prefeito, onde outra vez predominava a palavra chave “péssimo”, nos dois grupos. As opiniões revelaram o sentimento de incompetência, de inexperiência, de obras inacabadas, de abandono da população, que levavam à formação dos conceitos-chaves que apontaram a ideia do “prefeito péssimo”:
- Minha avaliação é nenhuma (não merece avaliação), porque ele não prestou pra nada. Péssimo, porque não fez nada [. . .] saúde, as escolas, segurança, violência, tudo. (Entrevistado do Grupo 1)
- Ele nem tenta fazer as coisas por Goiânia. Parece que ele fica lá no gabinete dele e pronto, fica ao Deus-dará, deixa correr solto. (Entrevistado do Grupo 2)
O perfil de prefeito ideal nos dois grupos, de maneira avassaladora, revelava que o eleitor queria ser visto e ter os seus problemas reconhecidos pelo gestor, pedia um gestor sensível a ele, eleitor, e à sua condição, e revelava um desejo de cumprimento das obrigações básicas de um prefeito. O que se viu foi a demanda por um gestor próximo da população, que a escutasse, que cumprisse suas obrigações, em contraponto ao que não veem no gestor que iria deixar o cargo:
Deveria ser uma pessoa que cumpriria com que está prometendo para a gente. Que fazia o verdadeiro papel de um prefeito... uma pessoa que se importava com a população, importava com o que as pessoas carentes tem. (Entrevistado do Grupo 2)
A eleição de Iris Rezende comprovava um fato importante na questão da formação da imagem pública, que aliás torna-se muito evidente quando se analisa casos clássicos, como o de Luis XIV, o Rei Sol (Burke, 2009): a formação de imagem pública é um processo que envolve repetição, relevância e coerência –sem causar fraturas de comunicação como nos aponta Goffman (1985). Em relação a esta pesquisa, o histórico político de Iris, formando a sua imagem, ao longo de décadas, fazia com que o principal papel da campanha fosse provocar a comparação com o histórico da gestão e do gestor que estavam de saída.
São variáveis conjunturais presentes no uso do dispositivo. A forma como o eleitor se comportava, elegendo este candidato, demonstrava que apesar de não haver alteração da imagem pública dele, mantendo inclusive a ambivalência desta imagem, havia vetores em ação, que levavam ao fortalecimento de uma perspectiva positiva dentro da já imagem pública existente.
ONDE COMEÇA A ATIVAÇÃO DE UM DISPOSITIVO
A pesquisa trouxe elementos que permitem sugerir que o dispositivo comunicacional/interacional pode ser aplicado como mapeamento e ferramenta de compreensão de episódios comunicacionais, quando alguns elementos podem ser confirmados na cadeia dos acontecimentos. Primeiro, há algo que dispara um processo comunicacional e dele se desenrola uma micro-rede comunicacional, que permite uma produção de sentido, uma produção simbólica, em um processo onde não há controle sobre o que é disparado, pois os dispositivos “não abarcam nem delimitam sistemas homogêneos” (Deleuze, 1990, p. 155).
É preciso relembrar aqui que o dispositivo interacional/comunicacional resulta de “agenciamentos táticos” num episódio comunicacional e que a comunicação é sempre uma ação:
A comunicação é sempre uma ação –modo pelo qual a sociedade produz seus variados processos interacionais e viabiliza o funcionamento de ambientes de articulação, dando espaço (parcialmente normatizado) para os participantes sociais exercerem suas estratégias (Braga, 2011b, p. 6).
Se a comunicação é uma ação, um dispositivo interacional tem que abarcar esta ação. Assim, para pensar a localização, ou a possibilidade de apontar um “espaço de observação” de determinado fenômeno –apontar o dispositivo interacional–, é preciso saber do seu ponto de partida, a partir de que momento ele começa a provocar produção simbólica, e depois, quando é que ele começa a provocar o entrelaçamento de matrizes, ou de dispositivos comunicacionais, quando olhamos para a formação de circuitos. É preciso localizar o início da ação e seu momento de salto qualitativo.
O episódio comunicacional, que é a comunicação concreta, se desenvolve, assim, no âmbito de “dispositivos interacionais”, produzidos nas circunstâncias históricas e acionáveis nos contextos específicos dos participantes. (...) Correlatamente, o episódio interacional acionador de tais dispositivos lhes dá forma, sentido, substância e direcionamento. (Braga, 2011b, p. 6)
Segundo Braga, o episódio interacional se desenvolve no âmbito do dispositivo, que pode ser percorrido por meio dele, e, ao mesmo tempo, é o acionador do dispositivo, que aí afirmamos ser, então, um encadeamento que tem algo que ativa este dispositivo, o faz disparar, que permite seu recorte, no tempo e no espaço, e determina a sua sequência. O destaque, nesse sentido, é àquilo que faz disparar um dispositivo, é ao que “lhe dá forma, sentido, substância e direcionamento”.
OS ELEMENTOS QUE CARACTERIZAM A FORMAÇÃO DE UM DISPOSITIVO
Impõe-se, então, a tarefa de pensar como seria a composição de um dispositivo. Ainda muito ancorados em Braga (2011b), apontamos algumas características para as suas ocorrências: a) o episódio comunicacional sempre dá espaço para seus participantes sociais exercerem suas estratégias; b) a sociedade gera, sempre com as tentativas comunicacionais, modelos de “funcionamento comunicacional”; c) os dispositivos são produzidos de acordo com circunstâncias históricas e são acionáveis de acordo com os contextos específicos dos participantes; d) e os dispositivos são modulados também por processos institucionais de seus ambientes de referência (Braga, 2011b, p. 6).
Todas estas coisas podem interferir numa ativação do processo, mas a intensificação do episódio comunicacional, que permite o recorte, é o momento em que a matriz comunicacional ganha amplitude e permite, a partir dela própria, o reconhecimento e rastreamento de uma produção simbólica. Numa ordem mais didática, pode-se dizer que o eclodir de uma produção simbólica resultante da combinação de vários fatores relacionados a uma matriz comunicacional aponta a existência de um dispositivo interacional/comunicacional que pode ser reconhecido e utilizado como espaço de observação.
O ELEITOR DISPARA CIRCUITOS
Nos dois grupos de entrevistados o eleitor, ao mesmo tempo em que demonstrou que usa várias fontes de informação para tomar sua decisão, e apresentou desconfiança para com os meios de comunicação - por algumas opiniões enfáticas apresentadas - , demonstrou também confiança nas relações pessoais, e até confiança na sua capacidade crítica, permitindo concluir que o cidadão não é simplesmente um inocente à mercê daquilo que é produzido por uma fonte inicial. Surgiram ao longo da pesquisa depoimentos que revelaram um sujeito – o eleitor – atento ao que está consumindo como informação e desejoso de conversa, de debate.
“Penso em tudo que vivo”, afirmou um integrante do grupo 2, o dos entrevistados que assistiram aos programas eleitorais, referindo-se ao que fez antes de tomar sua decisão de voto. Outros afirmaram buscar conhecer as propostas para debater com os candidatos, e para debater, eles relatavam a procura por canais, visando conhecer os projetos e as ligações políticas de quem estava na vida pública, aqui entendida como o espaço da prática política institucionalizada ou do serviço público de Estado. Percebeu-se um eleitor preocupado em reafirmar a solidez do seu pensamento, dizendo que não podia confiar em tudo que era publicado no Facebook, embora ele estivesse lá, nas redes sociais, se relacionando, e duvidando do horário eleitoral na televisão, que ele também afirmava assistir:
- As discussões entre amigos e os conteúdos nas redes sociais são decisivos. A primeira é onde formulo meus anseios para um candidato a segunda é onde posso comprovar quais os candidatos que atendem às minhas expectativas. (Entrevistado do grupo 1)
- Eu assisto os programas, mas eu não sei se eles servem de base porque eles enchem muita linguiça na hora que eles vão falar, falam muito mal um do outro. (Entrevistado do grupo 2)
Em termos práticos, o efeito deste entrecruzamento de matrizes comunicacionais e contextos é a perda de controle sobre o que é produzido como temática, ou seja, sobre o conteúdo a ser transmitido no processo de um episódio comunicacional. Se algo funciona como ativador/acionador de uma comunicação, isso não garante que a circulação simbólica se dê segundo os interesses do emissor. O melhor modo de explicar isso foi comparar as performances anteriores e posteriores de uns e outros candidatos, nos termos da pesquisa qualitativa.
Na eleição dentro de Goiânia, como em outras localidades, aos candidatos e suas equipes, fora concedido o direito de produzir as próprias mensagens, ter algum controle sobre o emitido, sobre a produção dos conteúdos. Mas não se domina tudo que se “transmite e emite” (Goffman, 1985, p. 14). Candidatos que tinham tempo de televisão semelhantes, pioraram suas performances de imagem ou melhoraram, confirmando que havia mais elementos envolvidos na percepção de uma mensagem, mesmo quando ela é produzida com objetivo único de gerar imagem positiva.
O delegado Waldir Soares (PR), naquela eleição, viveu uma experiência exemplar de segundo lugar4 durante toda a campanha, nas pesquisas quantitativas, e até mesmo primeiro lugar, enquanto o candidato Iris Rezende ainda descartava sua participação no pleito, viu seu posto desmoronar ao longo do primeiro turno, para terminar com 10,48% dos votos válidos, representando 71.727 votos. Waldir tinha mais de 600 mil seguidores no Facebook e havia recebido mais de 270 mil votos para deputado federal, dois anos antes.
Seu tempo de televisão era de 50 segundos por programa. Houve então acesso ao mecanismo de propagação de discurso, mas Waldir não logrou êxito na construção de uma imagem positiva. Pelo contrário, conseguiu, por algum motivo, e à sua revelia, produzir, ou acelerar a formação de uma imagem negativa, embora, obviamente, o propósito da mensagem fosse exatamente o oposto.
No caso, havia um histórico anterior e os elementos de uma imagem negativa, de louco ou desequilibrado, já estavam presentes na cena, mas de maneira muito discreta, segundo nos revelam os entrevistados do Grupo 1: “Me parece um louco que não saberia o que fazer com a cidade” (Entrevistado do Grupo 1); A imagem é confirmada de maneira mais expressiva no Grupo 2: “parece que não seja uma pessoa certa não viu, parece ser meio doido mesmo” (Entrevistado do Grupo 2).
Francisco Jr., com um tempo não muito diferente, 1’16” (um minuto e dezesseis segundos), além de muito desconhecido no início, tinha pouco mais de 1% na pesquisa de 10 a 12 de agosto de 20165, e vai terminar o processo com uma imagem positiva, de candidato que tinha boas propostas e que não atacava ninguém:
- Achei que entre as opções é o mais equilibrado. (Entrevistado do Grupo 2)
- Eu já ouvi falar dele em outros casos, parece que ele é uma pessoa honesta e tudo, então eu acho que ele seria um ótimo candidato a ser prefeito aqui de Goiânia. (Entrevistado do Grupo 2)
- Ouvindo os programas políticos aí, pra mim, pela sua postura, é um candidato sensato. (Entrevistado do Grupo 2)
Francisco Jr. terminou tecnicamente empatado com Waldir Soares, com 9,31% dos votos válidos. São exemplos que demonstram que os resultados podem ser positivos ou negativos, e que ter acesso dos conteúdos iniciais não garante controle sobre os resultados da comunicação. Tecnicamente, foram resultados eleitorais muito próximos, mas na análise qualitativa dos dados, Francisco Jr. retratou uma situação de êxito comunicacional, enquanto o delegado Waldir representou um caso de fracasso expressivo diante de um potencial eleitoral constatado. Dois aspectos observados a partir do mesmo dispositivo interacional comunicacional escolhido.
10. O DISPOSITIVO INTERACIONAL CRIA NOVAS POSSIBILIDADES
Os resultados de pesquisa mostraram que o conceito de dispositivo é aplicável e, mais do que isso, que se trata de uma novidade muito importante para a teoria da comunicação e seus debates. Demonstraram também que um dispositivo pode ser criado: o horário eleitoral, na investigação feita, demonstrou ser um dispositivo implantado dentro do meio televisão, propositadamente, com o fim de provocar a integração de fatores e promover comunicação. Assim como o HGPE na TV, é possível criar, por exemplo, uma campanha publicitária, utilizando um meio ou matriz a escolher de acordo com os objetivos definidos, estabelecendo a possibilidade de, a partir dela, realizar uma observação, compondo este espaço que é o dispositivo interacional tal qual o propõe Braga (2017).
E este instrumento formado, que pode tornar-se dispositivo, tem a possibilidade de ativar uma sequência de dispositivos –formando então o “circuito” comunicacional (Braga, 2017)– capaz de prolongar a reverberação do conteúdo envolvido, numa sequência disparada, sem que haja qualquer controle sobre o seu desfecho –que é o momento em que a dinâmica comunicativa simplesmente se dissipa. O modelo publicitário, e dentro dele o modelo eleitoral, procuram ampliar propositadamente ao máximo a reverberação, planejando comunicação integrada.
Este plano esbarra nos vetores constituintes de um processo comunicacional, de modo que o interacional deste episódio comunicacional e sua consequente propagação cessarão em algum momento, à revelia dos produtores da ação inicial. O publicitário, neste caso, revela-se o criador de uma campanha ativadora de um circuito comunicacional, uma campanha publicitária seria isso.
Além disso, a noção de dispositivo interacional/comunicacional facilita o debate sobre a comunicação contemporânea, que tende a ser integrada e convergente, e também transversal e multivetorial, porque permite compreendê-la para além das dinâmicas dos chamados meios de comunicação. A dinâmica do dispositivo permite reconhecer a interferência de outras matrizes de comunicação que têm grande importância no mundo contemporâneo e que não podem ser enquadradas no conceito de meios de comunicação, e muito menos no conceito de meios de comunicação de massas (Signates, 2009), mas que também podem ser ativadas e criadas, e serem inclusive as disparadoras de um encadeamento de dispositivos criando um episódio comunicacional –formando um “circuito”.
A relevância dos processos comunicacionais na política há muito deixou de ser uma proposição discutível (Signates, 2012). A observação do processo eleitoral brasileiro de 2014, na disputa pela presidência da república, feita com o recorte da cidade de Goiânia, a partir do programa eleitoral na televisão, revelou a existência de estratégias de disparos de informação para construção de imagens públicas, dos candidatos, que acionavam uma rede incluindo ainda o rádio e a internet, além de outros espaços comunicacionais. Grande parte desta rede era organizada pela própria campanha, e permitida pela legislação que regula o HGPE, para fazer suporte a uma ativação inicial.
Aqueles acontecimentos observados em 2014, os efeitos das estratégias de comunicação e a sua reverberação em outras matrizes comunicacionais, provocaram mudanças no posicionamento do eleitorado, que puderam ser observadas pelas pesquisas eleitorais, e pelos resultados de primeiro e segundo turno. O que parecia muito enquadrar-se na proposição de dispositivo interacional/comunicacional pode ser testado e se repetiu nas eleições de 2016, na cidade de Goiânia, Goiás, como foi possível observar por meio deste trabalho de pesquisa, segundo a informação dada pelo próprio eleitor sobre o seu pensamento e comportamento. Ao utilizar instrumento, um recorte sobre uma matriz comunicacional, revelou-se que houve, a partir dele, a formação de imagem pública dos candidatos.
Com os dados qualitativos, é possível propor que o dispositivo interacional/comunicacional representa uma novidade que amplia as possibilidades de observação dos fenômenos comunicacionais –é, neste sentido, uma articulação fenomenológica–, de um ponto de vista de um observador ou pesquisador que aproveita um instrumento pré-existente, mas também aumenta as possibilidades de interpretações de outra maneira: o dispositivo pode ser ativado, acionado, pode estar disponível mas não utilizado até que seja acionado, e pode até mesmo ser criado, e, a partir da ativação, desencadear ainda uma outra, a de uma rede comunicacional, ou um “circuito”.
O dispositivo interacional é um conceito avançado e complexo, porque permite superar a ideia de que os fatos comunicacionais sejam provocados sempre pelos grandes meios ou grandes corporações do business que os controlam –mesmo se reconhecendo nestes uma possibilidade grande de funcionarem também como dispositivos. Por ele se pode mapear os fatos como processos, em recortes empíricos possíveis, em que vários vetores interferem, mesmo que haja um em especial, central, que dê partida e que esteja vinculado a tudo que se torna observável, a partir de então. Esta centralidade é necessária para permitir recortes observáveis, que são os vínculos de vetores com esta matriz central.
Este vetor especial, esta matriz central, este observatório, é único em cada evento recortado –cada dispositivo. É um mapa que só serve àquela circunstância estabelecida, que é cheia de transversalidades, mas a partir de um centro onde se ligam as articulações que podem ser examinadas. As parcelas de redes formadas com desdobramentos das matrizes ligadas àquela central podem em algum momento fugir da capacidade de análise. Começam a se distanciar do centro, que ajuda no controle empírico, e já abrigam aí nova construção: o circuito.
O fato de um dispositivo provocar a formação de um movimento comunicacional em propagação –limitado na observação, é verdade– não significa que os sentidos construídos anteriormente, no seu disparo, serão mantidos ou modificados, isto é sempre uma situação que dependerá de circunstâncias não controláveis. O dispositivo comunicacional enriquece a análise dos episódios de comunicação porque permite percorrer os caminhos de uma produção de sentidos, sem um pré-estabelecimento de que se trata de mediação. Há uma produção simbólica que circula por si, que liga situações, circunstâncias, e também sujeitos que não são simples “vazios” simbólicos a serem ocupados.
REFERÊNCIAS
Albuquerque, A. (2004). Propaganda política e eleitoral. Em Rubim, A. C. (Org) Comunicação e Política: conceitos e abordagens (pp. 451-482). Salvador: EDUFBA.
Bardin, L. (2019). Análise de conteúdo. Lisboa: Ed. 70.
Braga, J. L. (2017). Circuitos de comunicação. Em Braga, J. L. et al., Matrizes interacionais: a comunicação constrói a sociedade (pp. 44-64). Campina Grande, PB: EDUEPB.
Braga, J. L. (2012). Circuitos versus campos sociais. Em Mattos, Ma., Janotti Junior, J. & Jacks, N., Mediação & midiatização (pp. 31-52). Salvador: EDUFBA.
Braga, J. L. (2013). O que a comunicação transforma? Em Braga, J. L., Ferreira, J., Fausto Neto, A. & Gomes, P. G. (Org.), 10 perguntas para a produção de conhecimento em comunicação (pp. 156-171). São Leopoldo-RS: Ed. UNISINOS.
Braga, J. L. (2011a). Dispositivos Interacionais. XX Encontro da Compós, GT Epistemologias da Comunicação. Porto Alegre. Recuperado de http://www.compos.org.br/data/biblioteca_1657.pdf.
Braga, J. L. (2011b). Constituição do Campo da Comunicação. Verso e Reverso, 25(58), 62-79.
Braga, J. L. (julho-dezembro, 2006). Mediatização como processo interacional de referência. Animus - Revista Interamericana de Comunicação Midiática, 5(2). Recuperado de: https://periodicos.ufsm.br/index.php/animus/article/viewFile/6693/4050#page=9
Burke, P. (2009). A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Zahar.
Campos, P. A. F. (2017). Dispositivo interacional em ativação (Dissertação de mestrado). Faculdade de Informação e Comunicação (FIC), Universidade Federal de Goiás (UFG), Goiânia, GO, Brasil. Recuperado de https://repositorio.bc.ufg.br/tede/bitstream/tede/7660/5/Disserta%C3%A7%C3%A3o%20-%20Paulo%20Alexandre%20Faria%20Campos%20-%202017.pdf
Datafolha. (2014). Série presidencial de 2014. Recuperado de http://datafolha.folha.uol.com.br/eleicoes/2014/presidente/indice-1.shtml.
Deleuze, G. (1990). ¿Qué es un dispositivo? En Michel Foucault, filósofo. Barcelona: Gedisa.
Ferreira, J. (2013). Como a circulação direciona os dispositivos, indivíduos e instituições? In: Braga, J. L., Ferreira, J., Fausto Neto, A. & Gomes, P. G. (Org.). 10 perguntas para a produção de conhecimento em comunicação (pp. 140-155). São Leopoldo, Rio de Janeiro: Ed. UNISINOS.
Goffman, E. (1985). A representação do eu na vida cotidiana. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
Secretaria Especial de Comunicação Social (SECOM). (2014). Pesquisa Brasileira de Mídia 2014: Hábitos de consumo de mídia da população brasileira. Brasília: Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
Secretaria Especial de Comunicação Social (SECOM). (2015). Pesquisa Brasileira de Mídia 2015: Hábitos de consumo de mídia da população brasileira. Brasília: Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
Signates, L. (2009). A sombra e o avesso da luz: Habermas e a comunicação social. Goiânia: Kelps.
Signates, L. (julho-dezembro, 2015). Da exogenia aos dispositivos: roteiro para uma teorização autônoma da comunicação. Líbero, 18(36), 143-152.
Signates, L. (2012). Epistemologia da Comunicação na Democracia: a centralidade do conceito de comunicação na análise dos processos políticos. Novos Olhares, (1), 7-18.
Signates, L. (2006). Estudo sobre o conceito de mediação e sua validade como categoria de análise para os estudos de comunicação. In: Sousa, M. W. (Org.) Recepção mediática e espaço público: novos olhares (pp. 55-79). São Paulo: Paulinas.
Signates, L. (2019). Nostalgia e demonização: o senso comum do apoio ao intervencionismo militar no Brasil antes de Bolsonaro. Novos Olhares, 8(1), 20-32.
Thompson, J. B. (1998). A mídia e a modernidade: uma teoria social da mídia. Petrópolis, Rio de Janeiro: Vozes.
*Contribución: el 100% del trabajo pertenece a los autores.
IDENTIFICAÇÃO DOS AUTORES
Luiz Signates. Doutor em Ciências da Comunicação, Universidade de São Paulo (USP), e Mestre em Comunicação, Universidade de Brasília (UnB), Brasil. Especialista em Políticas Públicas e graduado em Jornalismo pela Universidade Federal de Goiás (UFGo), Brasil. Professor associado dos Programas de Pós-Graduaçãos (PPGs) em Comunicação da UFGo, e em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), Brasil. Leciona nos Cursos de Jornalismo de ambas as instituições. Proprietário do Instituto Signates de Pesquisa. Lidera o Núcleo de Pesquisa em Comunicação, Cidadania e Política (UFG) e o Grupo de Pesquisas Interdisciplinares sobre o Espiritualismo Brasileiro e Internacional (PUC-Goiás). Autor e editor de vários trabalhos, incluindo: A sombra e o avesso da lua: Habermas e a comunicação social (Kelps, 2009); Política no feminino? A imagem da mulher candidata nas eleições municipais de Goiânia (Grafset, 2010); Cidadania comunicacional: teoria, epistemologia e pesquisa (FIC/UFG, 2016).
Paulo Alexandre Faria Campos. Mestre em Comunicação Mídia e Cultura, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Faculdade de Informação e Comunicação, Universidade Federal de Goias (PPG-FIC/UFGo), Brasil. Jornalista pela UFGo (1986) e psicólogo graduado pela Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás), Brasil. Integrante do Núcleo Freudiano de Psicanálise em Goiânia desde 1996. Professor de Teoria da Comunicação, Faculdade Araguaia(Go), das disciplinas de Psicodinâmica (abordagem Psicanalítica) na UniEvagélica (Goiás) e de cursos de Pós-gradução em Psicologia pelo Instituto Pessoa/Unicamps (Ba), Brasil. Jornalista e publicitário em Goiânia-GO.
REGISTRO BIBLIOGRÁFICO
Signates, L. & Campos, P. A. (julio-diciembre, 2019). Ativação de dispositivos comunicacionais. Um estudo da noção de dispositivo em eleições recentes em Goiânia, Brasil. InMediaciones de la Comunicación, 14(2), 119-143.
Artículo publicado en acceso abierto bajo la Licencia Creative Commons - Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).
1 As eleições presidenciais brasileiras de 2014 foram vencidas pela candidata do PT Dilma Rousseff, que disputou contra outros 10 candidatos: Aécio Neves (PSDB), que disputou com ela o segundo turno; e os candidatos Eduardo Campos (PSB), morto em acidente aéreo em 13/08/2014, durante a campanha; Eduardo Jorge (PV); José Maria de Almeida (PSTU); José Maria Eymael (PSDC); Levy Fidelix (PRTB); Luciana Genro (PSOL); Mauro Iasi (PCB); Pastor Everaldo (PSC); e Rui Costa Pimenta (PSB).
2 As eleições de 2016, em Goiânia, foram disputadas por 7 candidatos. Íris Rezende (PMDB), que venceu o segundo turno contra Vanderlan Cardoso (PSB); Adriana Accorsi (PT); Djalma Araújo (REDE); Francisco Júnior (PSD); Delegado Waldir (PR); e Flávio Sofiatti (PSOL).
3 Considerando o conceito de que tratamos aqui, e considerando o meio televisão, os debates poderiam ser tratados também como dispositivos interacionais. Na mesma plataforma, a televisão, seria um outro dispositivo em ação.
4 Pesquisa Serpes/O Popular, de 10 a 12 de agosto de 2016, trazia delegado Waldir com 20,6% dos votos.
5 Pesquisa Serpes/Jornal O Popular, publicada em 14 de agosto de 2016.