Virtual Youtubers

Entre o corpo e a imagemi


Virtual Youtubers

Entre el cuerpo y la imagen


Virtual Youtubers

Between body and image


DOI: https://doi.org/10.18861/ic.2023.18.1.3341


NORVAL BAITELLO JR.

norvalbaitellojr@gmail.com – San Pablo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7814-7633


GABRIEL SOARES

gabrielts01@gmail.com – San Pablo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4062-0055


CÓMO CITAR: Baitello Jr., N. & Soares, G. (2023). Virtual Youtubers. Entre o corpo e a imagem. InMediaciones de la Comunicación, 18(1), 145-169. DOI: https://doi.org/10.18861/ic.2023.18.1.3341


Fecha de recepción: 1 de agosto de 2022

Fecha de aceptación: 25 de noviembre de 2022



RESUMO


Os Virtual Youtubers (Vtubers) são streamers que usam um avatar animado em vez de expor seu rosto. Escondendo sua identidade, eles são livres para se recriarem como seres fantásticos. Isto é possível graças às imagens que utilizam os corpos destes streamers para se aproximar a fim de atrair nossa atenção, já que elas precisam de olhares para não serem esquecidas, como afirma a teoria da iconofagia de Norval Baitello Jr. Novas tecnologias permitem que Vtubers interajam com outras pessoas diretamente através de um chat. Esta interação ocorre constantemente e a linha entre "eu" e "outro" é embaçada. Os Vtubers podem ser o melhor exemplo do que Vilém Flusser chama de homem artificializado, aquele cuja vida é deliberada. Neste sentido, o artigo enfoca a observação de comunidades online com o objetivo de analisar a prática dos Vtubers e estabelecer se ela implica alguma mudança na relação com o "outro" e com a imagem, e se esta imagem tem novas características. Como hipótese, é proposto que os Vtubers são um novo tipo de imagem que só faz sentido quando eles estão ao lado do corpo humano. Os donos desses corpos se tornam parte de um mundo de fantasia onde suas características físicas não importam e eles podem ser o que quiserem. Portanto, os Vtubers seriam criaturas que se movem entre o corpo e a imagem.


PALAVRAS-CHAVE: Virtual Youtuber, streaming, artificialização do homem, artimanha, iconofagia.



RESUMEN

Los Virtual Youtubers (Vtubers) son streamers que utilizan un avatar animado en lugar de exponer su cara. Al ocultar su identidad, tienen liberdad para recrearse como seres fantásticos. Esto es posible gracias a las imágenes que utilizan los cuerpos de estos streamers para acercarse con el fin de atraer nuestra atención, dado que necesitan miradas para no ser olvidadas, tal como afirma la teoría de la iconofagia de Norval Baitello Jr. Las nuevas tecnologías permiten a los Vtubers interactuar con otras personas directamente a través de un chat, y esta interacción se produce de forma constante y la línea que separa al “yo” del “otro” se desdibuja. Los Vtubers pueden ser el mejor ejemplo de lo que Vilém Flusser llama el hombre artificializado, aquel cuya vida es deliberada. En tal sentido, el artículo se detiene en la observación de las comunidades en línea con el objetivo de analizar la práctica de los Vtubers y establecer si conlleva algún cambio en la relación con el “otro” y con la imagen, y si dicha imagen tiene nuevas características. A modo de hipótesis, se plantea que los Vtubers son un nuevo tipo de imagen que solamente tiene sentido cuando están junto a cuerpos humanos. Los propietarios de estos cuerpos pasan a formar parte de un mundo de fantasía donde sus características físicas no importan y pueden ser lo que quieran. De allí que los Vtubers serían criaturas que se mueven entre el cuerpo y la imagen.


PALABRAS CLAVE: Virtual Youtuber, streaming, artificialización del hombre, artimaña, iconofagia.



ABSTRACT


Virtual Youtubers (Vtubers) are streamers who use an animated avatar instead of using their own face. By hiding their identity, they are free to recreate themselves as fantastic beings. This is possible thanks to the images used by these strstreamers’ bodies to approach each other with the objective of grasping our attention, given that they need to be seen to avoid being forgotten, as affirmed by the iconophagy theory of Norval Baitello Jr. New technologies allow Vtubers to interact with other people directly through a chat service, and this interaction is produced constantly. Thus, the line separating “I” and “You” blurs completely. Vtubers can be the best example of what Vilém Flusser calls the artificial man, one whose life is deliberate. Regarding this, the article focuses on observing communities online with the objective of analyzing Vtubers’ practise and establishing whether it carries any change in the relationship with the “other” and with the image and whether that image has new characteristics. As a hypothesis, we hold that Vtubers are a new type of image that becomes meaningful only when it is near to human bodies. Owners of these bodies become part of a fantasy world where their physical characteristics do not matter and they can be whatever they want. Therefore, Vtubers would be creatures who move between body and image.


KEYWORDS: Virtual Youtuber, streaming, artificialization of the humans, trick, iconophagy.



  1. INTRODUÇÃO


Hoje em dia é comum assistirmos vídeo logs, palestras ou shows pela Internet. Celebridades da web surgem e acumulam centenas de milhares ou até milhões de espectadores, pessoas que esperam ansiosamente cada novo vídeo ser postado. Com o avanço da tecnologia, tudo se tornou mais rápido, podemos assistir isso “ao vivo”, sem que a pessoa que transmite precise de equipamentos caros como os de uma rede de televisão e muito menos do conhecimento técnico que seria necessário para operar tal equipamento. Tudo o que precisamos é de um celular e clicar em um link em alguma plataforma de streaming: pronto, somos capazes de transmitir para o mundo inteiro qualquer coisa que estivermos fazendo naquele momento.

A facilidade em fazer streams permitiu que muitas pessoas fizessem disso o seu hobby ou até mesmo fonte de renda. Sites como o Youtube ou o Twitch oferecem suporte para que espectadores façam doações aos streamers, ou seja, quanto mais interessante for a sua stream, mais pessoas estarão assistindo e você terá mais chances de ganhar dinheiro fazendo uma coisa que normalmente seria apenas diversão, como, por exemplo, jogar videogame. A popularidade de cada stream varia muito: os grandes canais no Twitch podem alcançar 80 mil espectadores durante uma transmissão, enquanto aqueles que estão começando podem ter dificuldade em manter uma dúzia de pessoas assistindo. Esses espectadores estão lá para assistir uma pessoa jogando videogame, mas o jogo em si não importa muito, o que importa é o streamer, ver suas reações em tempo real, observar suas expressões faciais ou rir de suas piadas e, claro, interagir com ele por meio do chat.

No entanto, não temos como objetivo falar de streamers em geral, mas sim de um grupo específico deles, os Virtual Youtubers (Vtubers). A diferença entre um Vtuber e um streamer convencional é que o primeiro não mostra seu rosto durante a stream, optando por utilizar um avatar. Esse avatar não é apenas um desenho estático na tela, ele se move de acordo com o streamer. Os mais simples se movem pouco, balançando de um lado para o outro ou mudando para outro desenho do mesmo personagem em outra posição. Outros, mais complexos, utilizam tecnologias de captura de movimento para imitar até mesmo expressões faciais do streamer. Alguns desses avatares são feitos em 3D, outros em 2D, animados de modo que aparentam um efeito de profundidade em seus movimentos (Imagem1).


Imagem 1. Ao apertar um botão, Amano Pikamee pode fazer seu avatar chorar, demonstrando o medo que a streamer sente enquanto joga o jogo de terror Resident Evil Village



Fonte: YouTube (https://youtu.be/pgtOTQdm9pQ).


Os Vtubers foram escolhidos como tema deste artigo por serem um fenômeno relativamente recente. Apesar de já populares no Japão há alguns anos, foi durante a pandemia do coronavírus que os Vtubers se popularizaram no ocidente. Além disso, o tema fazia parte de uma pesquisa mais abrangente, voltada a cultura pop japonesa, porém, após estudá-lo, percebemos que era possível encontrar nele características possivelmente únicas e que mereciam a devida atenção, como veremos a seguir.

Em um curso de 1985, Vilém Flusser (1985a, 1985b) fala sobre o homem artificializado. O filósofo diz que os avanços tecnológicos permitiram ao ser humano ter uma vida deliberada, mudar o jeito como se relaciona com o “outro”. Ele também acredita que o artista se tornaria sua própria obra. Ao conhecer os Vtubers, enxergamos neles características similares ao que Flusser nos conta. Surgem aí nossos questionamentos: Seriam os Vtubers os humanos artificializados de Flusser? Haveria nesta atividade uma mudança no modo como nos relacionamos? E se essas mudanças foram causadas pelas imagens, seriam essas imagens diferentes de alguma maneira?

Graças a seus avatares, os Vtubers são capazes de reinventar a si mesmos como criaturas fantásticas. Não há regras para o que eles podem ser, e sua nova aparência traz junto uma nova narrativa, que é compartilhada com seus espectadores. Estes, por sua vez, são parte importante desta atividade, já que sem eles os streamers estariam falando sozinhos em frente a câmera. Neste artigo temos como objetivo analisar como se dá a relação entre o Vtuber e seus fãs, tendo como base as ideias de Flusser, como dito anteriormente, e também por meio da observação dessas streams e de comunidades online, como Reddit e Discord. Quanto a relação com as imagens, faremos uma análise de acordo com a teoria da iconofagia de Norval Baitello Jr. (2005).

Acreditamos que as imagens utilizadas como avatares dos Vtubers são diferentes de outras imagens, pois elas ganham significado apenas graças ao corpo por trás delas. Não são apenas desenhos animados, como seriam se estivessem sozinhas. Com a ajuda de uma pessoa elas chegam mais próximas de se tornarem parte do mundo real. Assim, se por um lado temos o corpo que se aproxima da imagem para viver em um mundo de fantasia, por outro temos uma imagem que se aproxima do corpo para estar presente no mundo real.


  1. OS STREAMERS POR TRÁS DE AVATARES


Os Vtubers são pouco conhecidos pelo público em geral, pois são relativamente novos. Não é possível saber ao certo quem começou com essa atividade, já que não há uma fonte oficial, mas vários sites repetem as mesmas informações. Em 2010, a empresa japonesa Nitroplus fazia uploads de vídeos com notícias sobre seus games usando um modelo 3D de sua mascote, mas acredita-se que foi Ami Yamato em seu canal no Youtube em 2011 a primeira a fazer um vídeo log contando sobre seu dia usando um avatar. No entanto, em ambos os casos os vídeos eram gravados e não ao vivo. Em 2012, a empresa Weathernews Inc. apresentou uma personagem 2D em uma live stream, porém ela era praticamente uma imagem parada, que mudava sua expressão facial de vez em quando, de acordo com o que dizia a pessoa que fazia sua voz.

Outros vlogglers passaram a usar avatares, mas foi só em 2015 que isso se tornou um gênero, graças a popularidade de Kizuna AI, a primeira a utilizar o termo Virtual Youtuber. Kizuna AI é uma personagem criada pela empresa Activ8 e interpretada por Nozomi Kasuga. Em seus vídeos ela dizia ser a primeira Vtuber, já que era na verdade uma inteligência artificial e não um ser humano. Inicialmente seus vídeos também eram apenas gravados, mas Kizuna AI interagia com os fãs por meio de outras plataformas, como o Twitter. Em julho de 2018 seu canal no Youtube atingiu 2 milhões de inscritos, mas foi só em 2020 que a companhia revelou quem fazia sua voz. É importante mencionar que no caso de Kizuna AI, há toda uma produção feita por sua companhia, Nozomi só gravava seu áudio. Em outras palavras, ela interpreta a personagem da companhia, diferente dos outros Vtubers populares de hoje: eles não estão interpretando ou seguindo um script, eles estão vestindo uma máscara.


    1. Metade menina, metade tubarão


A popularidade de Kizuna AI fez crescer o número de vloggers e streamers utilizando avatares animados. Diferente dela, esses streamers atuam sozinhos, sem empresas por trás. Há diversas razões pelas quais um streamer decide ser um Vtuber, desde simplesmente gostar da ideia de usar um avatar legal, até a facilidade em vencer a vergonha de falar na frente da câmera. Algumas streamers mencionam que o avatar torna tudo mais prático, pois não precisam se preocupar com maquiagem antes de cada stream, por exemplo. Há também aqueles que preferem não ser identificados por questões de segurança. Mas a característica mais interessante talvez seja que, ao usar um avatar, aquela pessoa pode ser o que quiser. Kizuna AI era uma inteligência artificial, outros Vtubers podem ser cachorros, gatos, robôs, anjos, dragões, etc., em sua maioria antropomorfizados. Mas isso não fica só no visual, eles incluem a narrativa fantástica em seu discurso. Eles não são humanos, são uma outra coisa.

Com o número crescente de Vtubers surgiram mais oportunidades no mercado e agências focadas nesse tipo de streamer começaram a aparecer. Essas agências oferecem avatares feitos por artistas profissionais, marketing, advogados que cuidam das questões de direitos autorais (não se pode monetizar uma stream no Youtube onde jogam um game sem permissão de quem o fez), entre outras coisas. Dentre essas agências está a japonesa Hololive Production, que é hoje a mais conhecida, com mais de 50 membros ativos que juntos possuem cerca de 43 milhões de inscritos no Youtube. Até recentemente Vtubers eram mais populares no Japão, onde apareciam em programas de TV, anúncios, etc., mas como tudo da cultura pop japonesa, aos poucos foram tomando proporção global. A Hololive tinha membros do Japão, Indonésia e, durante um período, também da China, porém foi só em 2020 que a agência apresentou o primeiro grupo de Vtubers ocidentais. Apesar de não serem as primeiras Vtubers a fazer streams em inglês, as meninas do Hololive English certamente causaram uma explosão na indústria.

As japonesas Shirakami Fubuki (uma garota-raposa que estreou sua carreira como Vtuber em junho de 2018) e Inugami Korone (uma garota-cachorro que fez sua estreia em abril de 2019) eram as duas mais populares Vtubers da Hololive, chegando próximas a 900 mil inscritos no início de setembro de 2020. Ao que tudo indicava, uma dessas seria a primeira da agência a alcançar 1 milhão de inscritos no Youtube, tornando-se a terceira Vtuber da história a conseguir o feito (após Kizuna AI e Kaguya Luna). No entanto, com a estreia de Hololive English - Myth - naquele mês, o cenário mudou (Imagem 2).


Imagem 2. Thumbnail do vídeo de anúncio do lançamento do grupo Hololive English - Myth -. Da esquerda para a direita: Ninomae Ina’nis, Takanashi Kiara, Amelia Watson, Mori Calliope e Gawr Gura. Todas inspiradas em seres mitológicos ou personagens da cultura popular



Fonte: YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=8c4_22LjGQo).


As 5 novas Vtubers da Hololive fizeram um grande sucesso, conseguindo um alcance maior do que as outras por falarem inglês. Até então, apenas uma Vtuber que fazia streams exclusivamente em inglês estava entre as mais populares: Nyatasha Nyanners, uma Vtuber independente (e mais tarde membro fundadora do maior grupo de Vtubers ocidental, VShojo) competia com Fubuki e Korone na corrida para ser a terceira a alcançar 1 milhão de inscritos. Porém, o grupo Hololive English teve um alcance bem maior do que o esperado pelos fãs. E apesar de todas elas terem tido esse grande alcance dentre a comunidade Vtuber, uma delas em especial atraiu os holofotes para si: Gawr Gura.

Vinda diretamente da cidade perdida de Atlântida, a garota-tubarão de mais de 9 mil anos de idade (ela não se lembra ao certo quantos anos tem) estreou no Youtube no dia 13 de setembro de 2020 e ganhou popularidade numa velocidade assustadora, passando o número de inscritos de Fubuki e Korone apenas 37 dias depois de sua estreia. Em 22 de outubro, Gura se tornou a terceira Vtuber a atingir 1 milhão de inscritos. Em 30 de junho de 2021 ela ultrapassou Kizuna AI, se tornando a mais popular Vtuber do mundo e, apenas alguns dias depois, atingiu a marca de 3 milhões de inscritos em seu canal no Youtubeii.

A adorável streamer atraiu atenção do mundo para os Vtubers, e muitas de suas colegas começaram a alcançar rapidamente a marca de 1 milhão no Youtube nos meses seguintes. Diversos sites noticiaram o fenômeno, surpresos com o número de visualizações e o dinheiro que cada stream de Gura conseguia (Imagem 3).


Imagem 3. Gawr Gura conversando com seus fãs e agradecendo a eles pelas doações



Fonte: YouTube https://youtu.be/iH2ZcHxKBpk.


Não se sabe ao certo como isso aconteceu. É possível que a popularidade que Gura e as outras meninas da Hololive English trouxeram ao gênero tenha sido apenas por falarem em inglês, mas há quem diga que mais importante do que isso foi o momento em que as pessoas se encontravam: Com a pandemia do Coronavírus ficando muita gente em casa, assistir streams se tornou uma ótima forma de passar o tempo.

Com a popularidade das Hololive English, todo o cenário Vtuber acabou ganhando mais visibilidade, trazendo não apenas mais fãs, mas também mais streamers. No Brasil há uma grande comunidade, e a Vtuber mais famosa se chama Batata com Pepino, que é independente e possui mais de 280 mil seguidores na plataforma Twitch e cerca de 260 mil no Youtube.

Podemos ver –em https://playboard.co/en/ que os Vtubers não estão entre os canais mais assistidos do Youtube e também não aparecem entre as live streams mais assistidas. Porém, eles dominam a lista de live streams que mais recebem super chats, ou seja, doações.

Na Twitch, é possível saber quais canais têm mais seguidores e horas assistidas –olhando o site https://twitchtracker.com–, mas não o quanto recebem. Ironmouse e Veibae, ambas da agência VShojo, conseguiram entrar algumas vezes no ranking de mulheres mais assistidas. Ironmouse tem mais de 1,350,000 seguidores, enquanto Pokimane e Amouranth (as maiores streamers mulheres da Twitch, que não são Vtubers) têm mais de 9,200,000 e 5,840,000, respectivamente. Apesar disso, a Vtuber tem uma porcentagem maior de seguidores que pagam mensalidade em seu canal, aproximadamente 0,52%, enquanto as outras têm 0,03% e 0,17%. Esses números não levam em consideração outros tipos de doações, então não há como saber quanto elas ganham.


  1. A ICONOFAGIA


Desde que começamos a produzir imagens passamos a nos tornar dependentes delas. Graças a isso, produzimos mais e mais imagens, com o objetivo de saciar essa dependência. Fazemos isso pois nossos corpos passaram a se alimentar de imagens, num processo que Norval Baitello Jr. (2005) chama de iconofagia.

A princípio, as imagens nos trazem sensações boas. Ver um filme, ouvir uma música ou ler um livro são atividades que podem ser muito prazerosas. Nós gostamos das imagens, e vê-las nos faz bem, pois nós nos emocionamos com o filme, relaxamos ao ouvir música, enfim, as imagens nos ajudam a esquecer por um momento de nossos problemas.

Consumir imagens é o início do processo da iconofagia. Em seguida, queremos mais imagens para consumir e, portanto, precisamos criar mais imagens. E quanto mais criamos, mais as imagens competem por nossa atenção, pois não somos capazes de consumir todas de uma só vez. Elas competem entre si porque dependem de nós para que não sejam esquecidas.


Então já não basta mais um cartaz, é preciso um outdoor, já não basta mais um outdoor é preciso um painel, já não basta mais um painel é preciso um painel eletrônico móvel etc. Elas começam a competir pelo nosso olhar. Duas coisas podem acontecer: ou o nosso olhar se cansa e começa a não enxergar mais ou então o nosso olhar engole todas essas imagens e as armazena ocupando todo o espaço das nossas próprias imagens e, portanto, nós devoramos as imagens quando entramos nessa etapa (Baitello Jr., 2007, p. 82).

Por consumir tantas imagens, acabamos querendo nos tornar imagens. Queremos ter o corpo de modelo que aparece na capa da revista e que não existe de verdade pois a foto é editada em um programa de computador. Queremos ter a casa da personagem da novela, que é um cenário em um estúdio. Queremos os poderes dos super-heróis do cinema. Tal fenômeno pode ser observado nas atividades cosplay (Soares, 2013). No cosplay, uma pessoa empresta seu corpo para que a imagem possa existir na primeira realidade. Quando isso acontece, entramos em uma nova etapa da iconofagia, na qual a imagem consome corpos. Isso pode ocorrer de várias maneiras, como é o caso, por exemplo, dos Vtubers, dos quais falaremos em breve, mas também há casos onde a busca por se tornar em uma imagem é perigosa, causando distúrbios como, por exemplo, a bulimia.


Alimentar-se de imagens significa alimentar imagens, conferindo-lhes substância, emprestando-lhes os corpos. Significa entrar dentro delas e transformar-se em personagem (recorde-se aqui a origem da palavra “persona” como “máscara de teatro”). Ao contrário de uma apropriação, trata-se aqui de uma expropriação de si mesmo (Baitello Jr., 2005, p. 97).

Assim, nós consumimos imagens e passamos a ser consumidos por elas. E como mais imagens são criadas constantemente, competindo pelo nosso olhar, elas acabam se alimentando também de outras imagens. Uma imagem mitológica, por exemplo, pode reaparecer em novas mídias, mantendo sua essência. Falaremos sobre estes casos mais adiante. Por ora, voltaremos a como as imagens consomem os corpos, apresentando os Vtubers.


  1. O HOMEM COMO SUA PRÓPRIA OBRA


Para Flusser (1985), uma das diferenças entre os seres humanos e os outros animais é que para fazer coisas nós utilizamos métodos que mudam com o tempo. Mudam, pois são técnicas, e novas técnicas são desenvolvidas. Artifício é o jeito de se fazer coisas, e fazer coisas significa agir sobre o mundo com o objetivo de alterá-lo. Porém, mudar o modo como fazemos as coisas não é tão simples quanto parece; mudanças de técnicas não surgem do nada e nem acarretam apenas em uma forma diferente do fazer. De acordo com Flusser (1985a):


Há um complexo feedback entre o nosso método de alterar objetos (nossa técnica), os objetos alterados (nossas obras), e nós mesmos (o artífice, o sujeito). Cada qual destes três fatores determina os demais, e é por eles determinado. A técnica altera o objeto, o objeto alterado altera a técnica, a técnica alterada altera o sujeito, e o sujeito alterado altera a técnica (Flusser, 1985, p. 1).


Segundo Flusser, sujeito designa a negação do objeto: “Ser sujeito é não ser objeto, é um não-ser” (Flusser, 1985a, p. 2). No entanto, conforme avançarmos na questão daauto alteração, veremos que essa noção muda, pois o sujeito e o objeto começam a se misturar. Assim, vemos que as alterações não podem ser infinitas, pois quanto mais as técnicas mudam, mais o objeto muda e mais as obras produzidas pelo homem vão de encontro a negação do mundo dos objetos, até que eventualmente isso não seja mais possível, pois o homem seria sua própria obra. Segundo Flusser (1985a), “tal situação seria o fim da história humana, a objetivação (realização, artificialização) total do sujeito” (p. 2).

É isso que acontece com os Vtubers, eles se tornam sua própria obra, se transformam nas narrativas que inventam e acabam com a distinção entre o sujeito e o objeto. Para seus espectadores, não existe uma Gawr Gura separada da que aparece durante as streams, ela é uma personagem ao mesmo tempo em que é ela mesma.

Segundo Flusser (1985a, 1985b, 1985c), a robótica e a informática nos permitem ver o início da artificialização do homem, já que a inteligência artificial, programada pela técnica, causa neste algumas tomadas de decisões que não são mais empíricas, mas baseadas nas teorias usadas no desenvolvimento desta mesma inteligência artificial. Em suas palestras, Flusser dizia que ainda era possível distinguir entre a inteligência artificial e a humana, e entre obras criadas pela robótica das obras dos humanos. Hoje, os algoritmos usados por machine learning permitem que inteligências artificiais fabriquem obras que nos fazem questionar isso. Mentiras se confundem com a realidade quando assistimos sem desconfiança um video deep fake compartilhado em uma rede social.


    1. A vida deliberada


Uma das características do homem artificilializado é a deliberação, a qual Flusser (2007) atribui nossa repugnação pela pós-história e pela artificialidade. Em oposição à espontaneidade, a deliberação é calculada e computada. É importante entender que Flusser não trata a deliberação como uma característica negativa, ao contrário, ele afirma que a repugnação que sentimos diminui caso entendermos os termos “deliberação” e “artificialidade” de outra forma. Deliberação seria “decisão fundada em conhecimento teórico” (Flusser, 1985b, p. 4) e a vida artificial é aquela que “se tornou consciente de sua própria estrutura –vida fundada em conhecimentos teóricos–” (Ibid.).

A espontaneidade de Gawr Gura e outros Vtubers é limitada por regras impostas por eles mesmos, suas agências ou plataformas de streaming. O conteúdo que podem apresentar é escolhido com cuidado, pois pode acarretar em processos, perda de monetização, banimento das plataformas e até a fúria de seus fãs. Alguns Vtubers, como Gura, evitam falar palavrões (mesmo que alguns escapem às vezes, talvez por não serem ainda seres humanos completamente artificializados), outros não se preocupam tanto com um conteúdo tão family friendly, como dizem.

Sobre os artifícios, Flusser então conclui que:


(Artifício) significa “fazer técnico”, no sentido de um fazer não espontâneo, mas deliberado. E o termo “homem enquanto artifício” significa agora: homem que vive deliberadamente. A história humana seria, vista desse ângulo, processo graças ao qual o homem vai gradualmente substituindo intuição empírica por conhecimento teórico, ao elaborar sempre técnicas novas em sua luta contra o mundo objetivo. E o estágio final de tal processo (estágio este atualmente previsível, por tecnicamente viável), seria homem inteiramente artificializado, liberado de toda a espontaneidade, e livre para deliberar sua vida. Em última análise pois “homem enquanto artifício” significa “homem livre” (Flusser, 1985b, p. 4).


A liberdade está relacionada à arte, segundo Flusser (1985a, 1985b, 1985c), pois esta liberta o homem dos objetos. Assim, o homem artificializado é um homem que é livre de sua subjetividade. Por fim, Flusser (1985b) afirma que “superada a subjetividade, a existência passará a ser intersubjetiva. Seremos liberados da negação, do estar aqui contra, e liberados para o diálogo, o estar aqui com os outros” (p. 5).

A questão do “outro” é de grande importância quando analisamos Vtubers e streamers em geral, já que estes não existem sem seus espectadores. A interação entre os streamers e o público deve ocorrer a todo momento por meio do chat, e o streamer que falhar em manter essa interação vai acabar perdendo visualizações. O chat, portanto, se torna parte essencial da stream, e as pessoas no chat se transformam: elas se perdem em meio a uma multidão e viram apenas frases que aparecem na tela. Quando um Vtuber interage com o chat, é como se estivesse interagindo com um ser com vida própria: “Chat, o que eu tenho que fazer aqui?”, “o que vocês acham, chat?”, “eu consigo fazer isso, chat, vai dar tudo certo”, são alguns exemplos de frases que acontecem durante streams (ver Imagem 4). O chat faz parte do show tanto quanto o Vtuber, e acaba também adquirindo personalidade, quando, por exemplo, os fãs discutem nas comunidades e dizem coisas como “o chat desse Vtuber é mais tranquilo, o daquele tira mais sarro”.


Imagem 4. Elira Pendora clicka um botão 200 mil vezes durante uma live stream de 8 horas



Fonte: YouTube (https://www.youtube.com/watch?v=0kkGu7yIi98).


Na imagem acima podemos ver como a relação entre o chat e o streamer é importante, pois é por meio da interação entre eles que a stream acontece. Ninguém assistia a essa stream pelo interesse em ver Elira apertando o mesmo botão por 8 horas, mas pela sua interação com o chat, por terem a oportunidade de conversar durante esse tempo.

O programa de conversas Discord permite a criação de servidores permanentes que suportam milhares de participantes. Dentro deles, os fãs compartilham vídeos e memes e podem conversar com o streamer, que também pode participar do servidor.

Os Vtubers de grandes agências não participam de servidores de fãs, mas para os independentes, fazer seu próprio servidor é praticamente uma necessidade. Os Vtubers brasileiros costumam criar e participar ativamente de servidores dedicados a eles mesmos, onde podem postar sua programação, avisos, e interagir com os fãs.

Nesses servidores os fãs criam memes, ou seja, mais imagens, que depois são vistas pelos streamers, muitas vezes durante suas lives, gerando um ciclo de “criação de conteúdo”. O objetivo dos criadores de memes é produzi-los rapidamente e fazer com que o streamer veja o que foi criado. Para os streamers, a criação de memes é positiva, pois mantém sua comunidade ativa e interessada.

A arte criada pelo homem artificializado tem como objetivo dar significado novo à vida, junto de seus outros. Quando Gura deixa de ser completamente humana para se tornar metade tubarão, ela o faz buscando a liberdade de ser quem ela realmente quer ser, ela dá um novo sentido à sua vida, sentido esse que depende inteiramente de seu chat. Assim, Flusser (1985b, p. 4) afirma que o significado da arte muda nesse momento, deixando de ser “manipular objetos” e passando a ser “manipular as regras do jogo” e o jogador é, portanto, aquele que “visa situações improváveis no jogo no qual está engajado”. O que o Vtuber faz é justamente jogar junto aos outros.


    1. A imortalidade


Flusser (2007) acredita que a comunicação humana é uma tentativa de superar a morte, como podemos ver a seguir:


A comunicação humana aparece aqui como propósito de promover o esquecimento da falta de sentido e da solidão de uma vida para a morte, a fim de tornar a vida vivível. Esse propósito busca alcançar a comunicação, na medida em que estabelece um mundo codificado, ou seja, um mundo construído a partir de símbolos ordenados, no qual se representam as informações adquiridas (p. 96).


Como dito anteriormente, a existência intersubjetiva do homem artificializado o libera para o diálogo com os outros, e sua arte tem como propósito dar significado à vida. Sendo assim, fica clara a relação entre a artificialização do homem e a comunicação; o estar junto ao outro é de fato o mais importante para que o homem supere sua mortalidade.

O filósofo explica que, além da informática e da robótica, a genética também nos faz repensar conceitos. Se por um lado, após o Renascimento, havia a noção de que a natureza era aquilo que já existia no mundo e a cultura aquilo que era criado pelo homem, hoje essas duas coisas também se misturam, não há mais uma separação clara quando, por exemplo, o homem cria vidas em laboratórios. A genética, no entanto, não é capaz de nos levar à imortalidade no sentido que a palavra tem no senso comum, mas ainda assim é capaz de transformar a morte em arte deliberada, o que, por sua vez, transforma toda a vida humana, como explica Flusser (1985c):


A consciência da morte injeta urgência em todo momento vital (o nosso tempo é limitado), e a consciência do absurdo da morte injeta meta em todo momento vital (queremos superar a morte, buscamos imortalidade). Pois se a morte passar a ser deliberada (o que não é sinônimo de suicídio), se a decisão de morrer passar a ser decisão intersubjetiva, o clima vital todo será modificado em cada instante vital, porque a cada instante vital seremos conscientes que a nossa imortalidade são os outros. Não viveremos para e contra a morte, mas para e com os outros (p. 6).


A superação da morte é um ponto essencial nessa discussão e veremos que aparece também durante a explicação do termo “artimanha”. Para Flusser (1985c), a melhor definição da palavra é a de “artifício manhoso” ou “fazer deliberadamente manhoso” (p. 6). Manhoso é algo que possui manha, que por sua vez é estratégia.


E se “estratégia” for definida como “arte de distribuir elementos sobre um campo a fim de enganar um inimigo, arte da guerra”, começaremos a intuir de que arte, de que guerra se trata. Trata-se da arte, da guerra que o homem trava, desde que homem é homem, contra a tendência estúpida e absurda do universo para a uniformidade, para a perda das informações, para o esquecimento, para a morte. “Estratégia” é o grito de guerra que o homem lança na cara do universo, é ela a arte que o homem manhoso (o homem verdadeira[mente] humano) emprega para enganar o mundo. A arte toda, todo o fazer deliberado que resulta em feitos deliberados, é articulação da manhahumana de opor-se a tendência universal para o esquecimento. Esta a artimanha da vida humana (Flusser, 1985c, p. 2).


Por meio de seus fãs os Vtubers continuam vivos. Não apenas por sua memória, mas porque mesmo depois que pararem de fazer streams, enquanto seus canais e seus vídeos estiverem disponíveis, fãs poderão assisti-los, aumentando o número de visualizações como se os canais ainda estivessem ativos. Até mesmo pessoas que nunca os assistiram antes terão essa oportunidade. Isso só é possível enquanto as pessoas continuarem assistindo, caso contrário eles cairão no esquecimento. No entanto, isso não é exclusividade de Vtubers, é uma característica humana: produzimos coisas para que não sejamos esquecidos.

O homem há muito tempo tenta armazenar informações, gravando-as em paredes, tijolos, bronze, papel, etc. Diferentes objetos foram e ainda são utilizados para armazenar suas memórias. Hoje, temos memórias artificiais, informações armazenadas em bits e que são supostamente mais resistentes contra a entropia. Esse tipo de armazenamento acaba por alterar a própria memória humana, que não tem mais a mesma necessidade de armazenar dados (e nem capacidade de fazê-lo perfeitamente devido a quantidade de dados armazenados), já que estes podem ser processados no local onde são armazenados, por um humano ou até mesmo por uma inteligência artificial.

O que é produzido hoje digitalmente é chamado por Flusser (1985c) nestas palestras de imagens sintetizadas. Estas imagens:


Não significam o que está lá no mundo dos objetos, mas, pelo contrário, o que poderia estar lá, deveria estar lá, não deveria estar lá, são imagens-projeto. Mas, uma vez projetadas, as imagens sintetizadas estão efetivamente lá, são vivências concretas. O que deve ser, o que não deve ser, o que pode ser, e inclusive o que não pode ser (por exemplo formas geométricas ou movimentos impossíveis no mundo dos objetos), passa a ser concreto nas imagens e por elas. Trata-se, em tais imagens, de feitos deliberados (programados), trata-se de arte (p. 5).


É importante destacar a afirmação de Flusser de que essas imagens são vivências concretas e com base nisso ir mais além e dizer que elas podem ser até mais importantes para muitas pessoas hoje do que a própria natureza (o mundo real, das coisas). Ninguém discute que Vtubers são pessoas reais, porém mais interessante que isso é que ninguém discorda de Gura quando ela diz ser um tubarão. Gura é uma menina-tubarão e ponto final, faz parte das regras do jogo seguir essa narrativa e os que tentam descobrir ou revelar informações sobre a verdadeira identidade da menina são mal vistos na comunidade. Para os fãs de Gura sua existência é de grande importância, isso fica claro pelas mensagens que ela recebe deles falando sobre como alegra seus dias.

A facilidade de acesso que temos a essas imagens, tanto em consumi-las quanto em produzi-las, permite que todos os homens possam se tornar artificializados. Flusser (1985c) já imaginava esse cenário:


A consciência que está emergindo, e as técnicas que tal consciência vai elaborando, vai permitir estratégias graças as quais todo mundo vai poder produzir, em conjunto com todos os demais, as aventuras mais inimagináveis e mais inconcebíveis. Todo mundo será artista em sentido tão radical, tão fantasmagórico, que o termo atual “arte” não é mais adequado. E por ser inadequado o termo, poderá dizer-se que “todo mundo será não-artista” (p. 7).


Tanto os Vtubers quanto seus espectadores produzem essas aventuras. Os Vtubers criam suas narrativas e fazem streams que em muitos momentos são direcionadas pela interação com o chat. Fora das streams, eles interagem com os fãs por redes sociais e estes, por sua vez, também criam conteúdo, como fan arts, comics e memes. Em suma, fazem parte de um ambiente criado em torno do Vtuber. Há aqueles que recortam e editam trechos de streams em que o Vtuber fez ou falou algo que chamou mais atenção e postam esses novos vídeos em seus próprios canais. São os fãs que legendam streams, garantindo o entendimento de pessoas de diferentes nacionalidades. Estes fãs que fazem tal edição são chamados de “clippers” e eles próprios acabam conhecidos dentro da comunidade, muitas vezes até reconhecidos pelos próprios Vtubers.


    1. Vtuber, o homem artificializado


Desde que o homem é homem, informa ele deliberadamente. Agora dispõe ele de nova consciência e de novas estratégias que lhe permitem fazê-lo relativamente sem preconceitos míticos, e relativamente independente do esquecimento. Pode ele agora ser artista relativamente desenganado, assumir relativamente melhor a carga pesada do saber ser sua vida artimanha. Minha fé é que isto o tornará relativamente mais humano.

Vilém Flusser (1985c, p. 7).


Como vimos, os Vtubers têm a capacidade de se recriarem como novos seres humanos. Eles podem escolher uma nova aparência, uma nova história de vida, muitas vezes escolhem até uma nova voz. Seu eu anterior é deixado de lado, substituído por uma nova versão de si mesmo, que, ao mesmo tempo em que é deliberada, é também mais livre. Ao abandonar essa parte de seu passado, eles adquirem mais força contra a entropia, pois permanecem vivos como imagens, junto aos seus outros, seus espectadores. Esses outros, que formam o chat, também podem perder sua própria noção de eu, pois passam a fazer parte de uma multidão. Ambos dialogam entre si, participando de um jogo que tem como objetivo criar narrativas fantásticas, dando um novo sentido a suas vidas.

São livres, pois vivem em seu próprio mundo, com suas regras. São livres pois podem ser quem quiserem ser. Suas vidas são artimanhas, feitas para nos convencer de que algo que não deveria existir, que não deveria estar lá, existe de fato. Não são os primeiros a fazer isso, já que como Flusser afirma, isso é o que sempre fizeram os artistas. A diferença é que agora a tecnologia lhes permite produzir sua arte junto com os outros, de um modo tão próximo que quase não há mais distinção entre ambos.

A repugnação que sentimos em relação a artificialidade também pode ser vista neste exemplo. Os que criticam os Vtubers costumam dizer que eles são falsos, que não se pode confiar em alguém que se esconde. Há também aqueles que dizem que os avatares animados não são capazes de mostrar o que o streamer realmente sente, pois não têm a mesma expressividade, mas eles conseguem demonstrar expressões que, apesar de não serem representações perfeitas, são o bastante para que possamos entender o que o streamer está sentindo.

Em suma, podemos ver nos Vtubers todas as características apontadas por Vilém Flusser para identificar a transformação para o homem artificializado. E encerraremos esse capítulo com a reflexão sobre a ironia de que, se Flusser estiver correto, é possível ser mais humano ao se tornar metade tubarão.


  1. A PÓS-VIDA DE KIRYU COCO


Em dezembro de 2019 a empresa Hololive lança um novo grupo de Vtubers, chamado Hololive 4th Generation ou holoForce. Deste grupo fazia parte Kiryu Coco, a Vtuber dragão que mais tarde quebraria recordes mundiais e se tornaria uma das mais populares e adoradas Vtubers.

A popularidade de Coco se dava principalmente devido ao seu senso de humor escrachado, mas também sua fluência na língua inglesa, pois até então não havia Hololive english e Coco foi a primeira a tentar se aproximar aos fãs ocidentais, que antes só podiam assistir streams legendadas por outros fãs que sabiam japonêsiii. Coco aparentava não ter limites, era muito extrovertida e agitada, falava palavrões e brincava até mesmo com o dono da empresa, Motoaki “YAGOO” Tanigo, tudo do jeito mais despreocupado possível. Aos sábados, apresentava um jornal de cunho humorístico com notícias falsas sobre ela e suas colegas Vtubers e fazia também um “meme review”, olhando os memes enviados por fãs, inclusive os de língua inglesa (Imagem 5).


Imagem 5. Kiryu Coco em seu modelo 3D entrevistando Motoaki "YAGOO" Tanigo, CEO da Cover Corporation, empresa dona da Hololive Productions



Fonte: You Tube (https://www.youtube.com/watch?v=PqTA58UkGkA).


Coco sempre dizia querer duas coisas, a primeira seria um condomínio próximo à sede da Hololive onde as streamers da empresa pudessem morar, o que acabou não se realizando. A outra coisa era a criação de uma filial de língua inglesa, para a qual ela fez um vídeo humorístico de recrutamento de streamers, muito antes de Hololive English ser anunciadoiv. Não temos como saber se foi Coco quem realmente convenceu seu chefe, mas ainda assim os fãs afirmam que sem ela Hololive English não existiria, o que por si só já a tornaria uma das mais importantes personalidades do mundo dos Vtubers.

No entanto, Kiryu Coco era também uma das mais populares Vtubers da Hololive, chegando rapidamente no top 5 na contagem de seguidores no Youtube e mantendo essa posição até o surgimento de Gawr Gura, que mudou o cenário de Virtual Youtuber no mundo. E apesar de nunca ter chego no primeiro lugar em números de seguidores, Coco tinha o primeiro lugar, não só dentro da Hololive, mas em todo o Youtube, em dinheiro arrecadado por meio de super chats (mensagens nas quais os membros do chat enviam dinheiro para o streamer para que o texto seja destacado e lido com mais facilidade por ele). Ou seja, Kiryu Coco era a streamer que mais recebia doações no Youtube no mundo inteirov.

Em setembro de 2020, Coco e sua colega Vtuber Akai Haato acabaram envolvidas em um grande problema. Ao mostrar dados do Youtube que diziam de quais lugares recebiam mais apoio de espectadores, colocaram na tela a bandeira do Taiwan, que Coco chamou de país, fazendo que alguns de seus espectadores chineses ficassem irritados por conta de seu posicionamento político, já que considerava Taiwan e China como países diferentesvi. O problema tomou grandes proporções e ambas as streamers foram proibidas de fazer live streams por quase um mês por “mostrarem dados internos do Youtube”. Apesar de se desculparem, os ataques dos “fãs” chineses não pararam, o que levou ao término da filial chinesa da Hololivevii. Mesmo assim, Coco ainda não teve paz, o chat de suas streams passou a ser muito mais monitorado e ela raramente podia colaborar com suas colegas pois o chat era atacado por bots feitos pelos fãs chineses ainda irritados com o ocorrido.

Isso não afetou a popularidade de Coco, que continuava adorada pelas colegas de trabalho e pelos fãs, que ainda a mantinham no topo da lista de streamers que mais recebiam dinheiro via super chats. Porém, é possível que essa perseguição tenha sido uma das razões pelas quais a streamer anunciou que em julho de 2021 seria a sua graduação, ou seja, ela abandonaria Hololive.

A decisão de deixar para trás a empresa - e o nome Kiryu Coco - partiu da própria streamer, que durante junho trouxe conteúdos e colaborações com vários membros da Hololive, inclusive uma entrevista com o próprio chefe, YAGOO, onde se despediram, deixando claro que não havia ressentimentos. Sua última stream foi repleta de lágrimas de várias colegas que participaram, e também quebrou novos recordes, sendo a stream de Vtuber com maior número de espectadores simultâneos (quase 487 mil pessoas), e a 155ª stream mais assistida em todo o Youtube. A stream também é ainda hoje a quarta stream que mais recebeu dinheiro em super chats em todo o Youtube (US $311.157,00)viii e a primeira dentre Vtubers.

Quase um ano após sua última stream, seu canal ainda é o segundo que mais recebeu doações em super chats, perdendo apenas para outra Vtuber da Hololive, Uruha Rushia, que esteve em atividade até fevereiro de 2022, quando foi desligada da empresa por uma quebra de contrato.

Porém, Kiryu Coco, como todas as imagens, não pode morrer. Ela permanece viva na memória (como já dizia Flusserix) de seus fãs e colegas de trabalho. Mesmo após sua graduação, artistas ainda fazem fan arts, fãs ainda falam sobre ela, outros Vtubers mencionam seu nome. E se por um lado Coco permanece viva, a pessoa por trás dela também vai muito bem.

Antes de entrar para a Hololive, Coco já era streamer, utilizando outro nome e mostrando seu rosto, pois não era uma Vtuber. Costumava fazer streams jogando ou mostrando cosplays. Dentre a comunidade Vtuber é muito malvisto falar sobre a “outra vida” ou a “vida anterior” dos streamers, termos muito interessantes, pois nos remetem a Aby Warburg, que fala sobre a pós vida das imagens, a vida após a vida. Aqui podemos brincar e dizer que, no caso dos Vtubers, sua primeira vida é aquela antes de virar um Vtuber, e sua pós vida (já que a primeira ainda não acabou) é a imagem, e depois de se graduar, pode haver outras tantas pós vidas, uma para cada personagem. Claro, esta é apenas uma brincadeira com o termo proposto por Warburg (2010, 2015), que na verdade significa que as imagens não morrem.

Após deixar a Hololive, Coco passou a fazer todas as suas streams em seu canal pessoal, que foi divulgado de modo sutil entre seus fãs, já que revelar a identidade de um Vtuber é muito malvisto na comunidade. Utilizando o nome Kson, ela agora fazia streams mostrando o rosto. Ninguém podia mencionar sobre sua vida na Hololive: todos sabiam que ela foi Kiryu Coco, mas fingiam não saber. Aos poucos a streamer juntou seus seguidores novamente e decidiu fazer um novo avatar, tornando-se uma Vtuber independente. Ainda não foi capaz de bater os recordes que bateu com sua identidade anterior, mas já está novamente entre os streamers que mais recebem dinheiro por meio de super chats do Youtube. Em junho de 2022 o canal de Coco (que é inativo) permanece com 1.44 milhões de inscritos e ainda está em segundo lugar em super chats, enquanto o canal de Kson tem 1.19 milhões de inscritos e está em 46º lugar nos super chatsx, com a possibilidade de continuar crescendo.

A história de Kiryu Coco nos mostra uma coisa bastante interessante: apesar de não ter mais uma empresa para ajudá-la a ter destaque, ela conseguiu se manter relevante no meio Vtuber sem o avatar com o qual se tornou popular, em outras palavras, os fãs a acompanharam por causa de sua personalidade, por gostarem da pessoa que estava atrás daquela imagem, e não por causa do desenho. Kiryu Coco obteve seu reconhecimento não pelo traço bonito do artista que a desenhou, mas pela streamer por trás desse desenho, uma pessoa animada, com bom humor, com ideias inovadoras, que aguentou durante meses a perseguição de espectadores furiosos que enviavam mensagens de ódio. O ponto aonde queremos chegar com isto é que a força desta imagem veio de uma pessoa, é isso que torna os Vtubers tão interessantes, são a coexistência de imagem e corpo.


  1. O CORPO (IN)EXISTENTE DOS VTUBERS

Os Vtubers utilizam a imagem para serem eles mesmos, só que de outro jeito. Voltamos às palestras de Flusser de 1985, quando este fala sobre a vida deliberada. O Vtuber muda suas próprias regras, age de modo pensado em suas streams, sem nunca deixar de ser ele próprio. Escolhe ter uma aparência diferente, pode usar palavras que ajudam a entrar no personagem (Pekora, da Hololive, faz o som “peko” no final das frases), muda sua própria história, até sua raça, mas não muda sua personalidade e este é o ponto mais importante.

O Vtuber nunca deixa de ser ele mesmo, apesar de todas as mudanças que possa vir a fazer. Pode até mesmo trocar de apelido e de avatar, mas suas lives continuarão com o mesmo estilo e sua voz ainda será reconhecida. Eles criam um personagem, mas não interpretam este personagem de maneira significante. O personagem pode ser um demônio que veio do submundo para conquistar a raça humana, mas quando assistimos sua stream, vemos uma pessoa gentil com a fala calma. Mesmo nas grandes empresas, em grupos como Hololive e Nijisanji, acredita-se que os personagens são criados previamente e só depois a empresa escolhe, dentre as streamers que passaram no processo de seleção, qual tem a personalidade que encaixa melhor em cada um.

Muitos Vtubers não se preocupam em criar uma história para seus personagens, alguns só utilizam esse recurso para esconder informações pessoais, como nome, idade, local onde moram e claro, aparência. Alguns não têm nenhum problema em revelar isso, postam fotos em suas redes sociais, mas ainda assim fazem streams usando o avatar.

Voltamos ao exemplo de Kiryu Coco, que após deixar a Hololive focou em seu canal pessoal, fazendo streams sem o uso de um avatar durante um tempo, e mesmo depois de criar um novo avatar, não mudou seu nome nem criou uma história para ele. Ela geralmente faz lives usando o modelo 2D, mas às vezes prefere fazer uma stream convencional, mostrando o rosto. O avatar que ela usa agora se parece com ela, uma versão em desenho animado de si mesma, e é muito diferente do que usava como Kiryu Coco.

É importante destacar que estas imagens não são apenas “avatares”, “personagens” ou “desenhos”, eles são os próprios streamers. Não é que não sejam chamados assim ou que as pessoas tenham a ilusão de que elas sejam reais, digo isto no sentido de que estas imagens não teriam força sem os streamers por trás delas. Sem os streamers seriam apenas desenhos, mas junto a eles ganharam vida e personalidade. É possível que Kiryuu Coco, a streamer da Hololive, nunca mais faça uma stream, mas a pessoa por trás dela ainda faz e conversa com seus fãs constantemente. Não é à toa que seus fãs choraram em sua despedida, mesmo sabendo que poderiam continuar a assistir suas streams em outro canal, afinal, a partir daquele momento Kiryu Coco se tornaria apenas uma memória, uma fase da vida da streamer. Não havia a opção de colocar outra pessoa no lugar, pois os Vtubers são representações das pessoas por trás deles.

Assim como ouvimos a voz de Michael Jackson em nossas mentes quando olhamos para uma fotografia dele, quando um fã vê um desenho de Gawr Gura, ele se lembra da stream, se lembra de sua voz, do modo como ela fecha os olhos e respira fundo quando percebe que cometeu um erro em um jogo. Seus movimentos vêm de uma pessoa real, sua voz é a de uma garota que existe, que tem uma vida como qualquer outra pessoa, não é como a cantora holograma Hatsune Miko, que tem uma voz robótica feita por computador. É como se cada desenho de Gura fosse uma fotografia da menina que está por trás do avatar. Enquanto um ator empresta seu corpo para a imagem de alguma outra coisa, o Vtuber empresta seu corpo para outra imagem de si mesmo.

O modo como os Vtubers cedem seus corpos para suas imagens também é muito menos intrusivo do que os exemplos citados anteriormente. Eles não precisam vestir uma roupa que impeça sua visão, nem emagrecer, ganhar músculos ou fazer plásticas para se parecer com um personagem, muito menos se colocar em uma situação de risco, afinal estão em casa, em frente ao computador. E apesar de ser bastante trabalhoso se tornar um Vtuber, muito mais do que se tornar um streamer convencional, algumas coisas são bem mais práticas, pois não é necessário se preocupar muito com iluminação e ângulos certos, nem com maquiagem, com roupas, com a barba que não está bem-feita ou se está fazendo uma careta enquanto joga, etc. As preocupações são com softwares, não com o que está fora da tela. Neste aspecto, o Vtuber acaba tendo mais conforto ao fazer suas streams.

Para os espectadores, o corpo do streamer não está presente, tanto no sentido material, já que não há uma comunicação de proximidade e sim uma que utiliza de mídias terciárias, quanto no sentido de uma percepção visual - quando o streamer aparece em sua webcam, conseguimos ver seu corpo, ou melhor, a imagem de seu corpo (nós temos o costume de confundir a imagem de um corpo com ele mesmo), mas no caso dos Vtubers, alguém que não conhece a tecnologia usada pode pensar que é um desenho animado e não que existe realmente uma pessoa ali.

É uma relação confusa e parece um tanto contraditória, pois ora afirmamos que o que importa é a pessoa por trás da imagem, que sem ela a personagem não teria força, ora dizemos que não percebemos um corpo ali, já que ele não está presente para quem assiste. Talvez possamos dizer que os espectadores percebem os desenhos como o próprio corpo do streamer e o streamer como a alma que dá vida a esse corpo. Alguns artistas fazem avatares de Vtubers os vendem para mais de uma pessoa, geralmente por preços mais acessíveis em comparação aos modelos personalizados. No entanto, duas pessoas diferentes usando o mesmo avatar terão um público diferente, não serão igualmente populares, etc.

O corpo real do streamer continua existindo, sentado na cadeira em frente ao computador, sem sofrer mudanças. E quando dizemos que este corpo não é percebido pelos espectadores, por não ser sequer visto por eles, percebemos que ele pode ser qualquer corpo. Em outras palavras, qualquer pessoa pode ser um Vtuber, independente de sua aparência. Não importa se a pessoa por trás do avatar é alta ou baixa, gorda ou magra, não importa sua cor, nem se possui alguma limitação física. Ao contrário do que possa parecer, nem mesmo a voz do Vtuber é tão importante assim: por exemplo, a Vtuber brasileira Rigaliz Panacea é uma menina muda, que conversa com seu chat por mensagens escritas. O que importa é o corpo como um todo, como ser vivo, que está ali naquele momento existindo junto a uma imagem que o representa, não suas características físicas. É por isso que as pessoas no chat de um streamer dizem que ele deve cuidar de sua saúde, o lembram de tomar água constantemente, de manter a postura correta na cadeira, etc.

Isso significa que o que importa é o corpo, não como é o corpo. Voltamos a Flusser (1985a, 1985b, 1986c), pois seu homem artificializado é aquele capaz de superar a subjetividade, ser liberado do “estar aqui contra” e passar para o “estar aqui com os outros” (p. 5), e o Vtuber é um ótimo exemplo disso, pois se não importam as características físicas nem o passado de cada um, então podemos dialogar entre iguais. Devemos deixar claro que esta é uma visão otimista, pois alguns integrantes dos chats ainda não são capazes de entender as regras desse jogo. Vtubers cujo gênero biológico é diferente do gênero de seu personagem (seja o streamer transsexual ou não) podem receber comentários de espectadores confusos com sua voz, o que é considerado rude e contra as regras da stream. Outros, confundem o Vtuber com a pessoa por trás dele, e se sentem enganados quando o Vtuber revela ser diferente do esperado. Algumas dessas pessoas acabam desenvolvendo relações parassociais com os Vtubers, acreditando que são amigos íntimos, o que também pode gerar problemas.

Para exemplificar, podemos citar o caso de Nora Cat, uma Vtuber japonesa. Nora Cat é um homem que usa um avatar de menina e um programa para alterar sua voz. Em 2018, ficou conhecida por conta de um problema no programa que utilizava para fazer streams, que acabou revelando sua aparência, que até então era desconhecia pelos seus fãs, que pensavam que a Vtuber era realmente uma meninaxi. O caso gerou revolta em alguns fãs, que se sentiram enganados, e foi usado por pessoas que não fazem parte da comunidade Vtuber como argumento contra ela, dizendo que não gostam de assistir as streams de alguém que não podem ver já que não podem confiar neles. Ainda hoje há quem acredite que todas as Vtubers são homens de meia idade se passando por meninas, o que não é o caso. De qualquer forma, mesmo depois do ocorrido, Nora Cat não perdeu todos os seus fãs, acabou inclusive atraindo mais pessoas por aparecer nas notícias, e hoje tem mais seguidores do que naquela época. Aliás, é importante lembrar que o caso aconteceu em 2018, anos antes a explosão dos Vtubers, e desde então o público tem entendido melhor que a atividade não tem o objetivo de enganar e que tudo não passa de uma brincadeira. Além disso, problemas relacionados a vida pessoal dos Vtubers são causados por espectadores, não por outros vtubers, já que estes entendem muito bem as regras do jogo.


  1. A MÁQUINA E O OUTRO


Donna Haraway (2009) descreveu, em seu manifesto ciborgue, como a era da união entre homem e máquina trouxe mudanças na sociedade. Para a pesquisadora, os avanços tecnológicos criaram um híbrido entre homem e máquina. Essa união não é o que podemos imaginar quando ouvimos a palavra ciborgue, já que não é literal, como explica Hari Kunzru (2009):


Ser um ciborgue não tem a ver com quantos bits de silício temos sob nossa pele ou com quantas próteses nosso corpo contém. Tem a ver com o fato de Donna Haraway ir à academia de ginástica, observar uma prateleira de alimentos energéticos para bodybuilding, olhar as máquinas para malhação e dar-se conta de que ela está em um lugar que não existiria sem a ideia do corpo como uma máquina de alta performance. Tem a ver com calçados atléticos (p. 23).


No entanto, a ideia de transformar o corpo para ter uma alta performance já existe há muito mais tempo do que o termo da ficção científica. O que poderia ser uma performance mais alta do que um corpo que nunca se cansa, nunca envelhece, ou seja, do que um corpo imortal? A busca pela imortalidade é muito anterior as máquinas da era dos ciborgues. A própria ideia por trás destas criaturas da ficção científica é a de seres humanos que vão além da sua humanidade, corrigindo suas imperfeições e, consequentemente, acabando com a sua mortalidade. Quando Haraway (2009) diz que prefere ser uma ciborgue a uma deusa, está apenas trocando uma imagem antiga por uma nova.


Tecnologias como videogames e aparelhos de televisão extremamente miniaturizados parecem cruciais para a produção de formas modernas de “vida privada”. A cultura dos videogames é fortemente orientada para a competição individual e para a guerra espacial (p. 73).


Hoje vemos um cenário que não é exatamente como Haraway descreve. Se por um lado as tecnologias nos afastam uns dos outros no sentido presencial, por outro elas não necessariamente contribuem para uma vida privada (como podemos ver facilmente com as das redes sociais) nem individual. Estamos aqui estudando um fenômeno no qual mesmo jogadores que jogam videogames para um jogador estão compartilhando seus momentos no jogo com outras pessoas. O que realmente vemos é uma vida voltada para estar com os outros, por isso postamos fotos em redes sociais, para que os outros as vejam. Os videogames possuem “conquistas”, que o jogador ganha ao fazer certas coisas como completar o jogo na maior dificuldade, achar itens escondidos, etc. Essas conquistas são apenas troféus digitais que ficam à mostra nos perfis das redes sociais, que inclusive informam qual a porcentagem de jogadores que conseguiram a conquista, dentre todos os que possuem aquele jogo.

Para Haraway (2009), os seres humanos são construções da sociedade em que vivem, portanto, podem ser reconstruídos. É a tecnologia que nos permite reconstruir nossa identidade. No entanto, como podemos ver com os Vtubers, por mais que possamos criar imagens que nos representam, com características diferentes das nossas, as imagens continuam sendo apenas imagens, o corpo continua sendo corpo. Enquanto Haraway afirma que não sabemos “onde termina o corpo e começa a máquina” (p. 91), quase todos os fãs de Vtubers sabem diferenciar a pessoa da imagem. Se não soubessem, Kiryu Coco não conseguiria manter quase todos os seus fãs quando deixou de ser uma streamer da Hololive, assim como Nora Cat não teria mantido seus seguidores depois da revelação de seu gênero. Os Vtubers resolveram os problemas de identidade fazendo novas identidades.

Isso acontece, pois, o Vtuber é um artista que se tornou sua própria obra, em outras palavras, podemos dizer que ele se tornou uma imagem e, curiosamente, fez isso sem precisar modificar seu corpo, que continua não sendo imagem. Porém, se o Vtuber continua sendo um humano que possui um corpo, podemos dizer que ele tenta ser imagem apenas no momento da stream, enquanto coexiste com uma imagem que está no ambiente digital. Será que podemos dizer que o Vtuber - e aqui chamo de Vtuber o conjunto de streamer e personagem, não a pessoa na frente do computador fazendo a stream - seria um novo ser, o verdadeiro ciborgue?


  1. PALAVRAS FINAIS: A COEXISTÊNCIA ENTRE CORPO E IMAGEM


Se pudéssemos dizer que existe uma diferença entre uma imagem qualquer e um Vtuber (novamente, aqui nos referimos ao streamer e seu avatar juntos como algo novo), seria algo mais ou menos assim: enquanto uma imagem representa algo já existente e tem como objetivo capturar olhares humanos, o Vtuber é uma imagem que representa um ser que só existe quando ela se une a um humano e tem como objetivo fingir ser um humano. Em outras palavras, enquanto o homem tenta se tornar imagem, a imagem tenta se tornar homem.

De acordo com a iconofagia de Norval Baitello Jr. (2005) as imagens nos devoram porque precisam de nossos olhares para se manterem relevantes, já que o esquecimento é o equivalente a morte. E nós devoramos as imagens porque queremos as sensações que elas nos oferecem. E se nós, ao devorarmos imagens em excesso, queremos nos tornar imagens, seria possível que imagens também queiram se tornar humanos, numa tentativa de nos atrair mais facilmente para continuar nos devorando?

Se isso for possível, se as imagens podem realmente querer ser como nós, então é por meio de algo como os Vtubers. Pois os Vtubers estão no limite entre o humano e a imagem, separados apenas por uma tela. Os streamers Vtubers (humanos) poderiam fazer streams sem um avatar, ou seja, sem se tornarem um Vtuber (humano+imagem), mas essa escolha dá a eles características que não possuíam, tanto em relação a sua aparência quanto em relação a outros objetivos (como por exemplo a força para vencer a timidez e falar com outras pessoas, como alguns relatam). Dá a eles também espaço em uma comunidade, onde podem dialogar com outros, de igual para igual. Além disso, ganham mais visibilidade, pois um avatar diferente pode chamar mais atenção e os que tiverem a chance de trabalhar em uma empresa como a Hololive garantem uma exposição de nível mundial. Já a imagem ganha características que lhe permitem simular um ser humano, como voz e personalidade. E embora essas características possam aparecer em outras imagens (como as de um filme), aqui ela acontece de modo quase instantâneo e, se antes elas podiam nos olhar, agora elas podem também conversar conosco. Podem simular humanidade pois podem ter reações humanas, mais reais do que qualquer inteligência artificial permitiria, se tornam quase humanas. Dessa forma, tanto a imagem quanto o ser humano ganham algo dessa relação. E para nós, essa relação não é tão nociva quanto outras interações com imagens que podemos ter. Dessa forma, a relação acaba se tornando uma de coexistência.

Estas não são as únicas e nem as primeiras imagens que queiram ser outra coisa. Outras imagens também estão tentando substituir coisas da realidade biofísica. Porém dessa vez temos imagens que tentam se tornar reais e substituir um corpo na tentativa de criar vínculos, que, diferentemente dessas outras imagens, estão muito mais próximos de vínculos entre seres humanos, já que essa imagem não está sozinha. O Vtuber não é só corpo nem só imagem, mas algo que existe entre os dois, atravessando os limites que os separam para criar um novo ser.


REFERÊNCIAS


Baitello Jr., N. & Barreto, J. R. (1992). A comunicação e os ritos do calendário – Entrevista com Harry Pross. Projekt. Revista de Cultura Brasileira e Alemã, 7, 7-10.

Baitello Jr., N. (2005). A era da iconofagia. São Paulo: Hacker Editores.

Baitello Jr., N. (2007). Podem as imagens devorar os corpos? Revista Sala Preta, 7, 77-82. Recuperado de: https://www.revistas.usp.br/salapreta/article/view/57322/60304

Flusser, V. (1985a). Artifício, artefato, artimanha I. O homem enquanto artifício. Em Arquivo Vilém Flusser São Paulo, 16-21. Recuperado de: https://www.arquivovilemflussersp.com.br/vilemflusser/?page_id=719

Flusser, V. (1985b). Artifício, artefato, artimanha II. A vida enquanto artefato. Arquivo Vilém Flusser São Paulo, 22-27. Recuperado de: http://www.arquivovilemflussersp.com.br/vilemflusser/?page_id=719

Flusser, V. (1985c). Artifício, artefato, artimanha III. A artimanha da vida humana. Arquivo Vilém Flusser São Paulo, 28-34. Recuperado de: http://www.arquivovilemflussersp.com.br/vilemflusser/?page_id=719

Flusser, V. (2007). O mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Cosac Naify.

Haraway, D. (2009). Manifesto ciborgue: Ciência, tecnologia e feminismo socialista no final do século XX. In Tadeu, T. (Org.), Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano (pp. 33-118). Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Kunzru, H. (2009). Você é um ciborgue. Um encontro com Donna Haraway. Em Tadeu, T. (Org.), Antropologia do ciborgue: As vertigens do pós-humano (pp. 17-32). Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Soares, G. T. (2013). Cosplay: Imagem, corpo, jogo. São Paulo: Pontifica Universidade Católica de São Paulo.

Warburg, A. (2010). Werke in einem Band. Frankfurt/Main: Suhrkamp.

Warburg, A. (2015). Histórias de fantasmas para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras.


* Contribución: el trabajo fue realizado en partes iguales.

* Nota: el Equipo Editorial de la revista aprobó la publicación del artículo.


Artículo publicado en acceso abierto bajo la Licencia Creative Commons - Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).


IDENTIFICACIÓN DE LOS AUTORES


Norval Baitello Jr. Doutor em Comunicação, Freie Universität Berlin (Alemania). Pesquisador 1A, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (Brasil). Professor titular, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Diretor, Arquivo Flusser São Paulo (Brasil).


Gabriel Soares. Doutor (candidato) e Mestre em Comunicação e Semiótica, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (Brasil). Bolsista, Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, Ministério da Educação (Brasil).

i Esta é uma versão estendida do artigo “Vtubers e a artificialização do homem: a artimanha e a recriação do eu” publicado no VII Congresso Internacional de Comunicação e Cultura (CoMcult), Centro Interdisciplinar de Semiótica da Cultura e da Mídia, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Brasil, 2021. O presente artigo faz parte da tese de doutorado, ainda em andamento, de Gabriel Theodoro Soares, no Programa de Comunicação e Semiótica da PUC-SP (Brasil).

ii Os fãs costumam seguir os números de inscritos dos canais dos Vtubers. O canal Stories Through Numbers fez um gráfico para ilustrar o crescimento das Vtubers da Hololive desde a criação do grupo em 2017 até o final de 2021. Aos 2m16s, Kiryu Coco aparece no gráfico pela primeira vez. Aos 2m55s, Gawr Gura aparece. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=ETo0ZuwvjFc (Acesso em 11 de junho de 2022). Este outro canal, Otaku Dictionary, fez um vídeo similar, abrangendo os Vtubers mais populares em geral e não apenas membros da Hololive, no período entre 2016 a abril de 2022. Gura aparece aos 3m14s. Ver: https://www.youtube.com/watch?v=MhkLY7ZZsNI (Acesso em 11 de junho de 2022).

iii Alguns dos motivos pelos quais Kiryu Coco é querida por seus fãs e alguns de seus projetos foram descritos neste post feito por um fã: https://www.reddit.com/r/Hololive/comments/lhnn91/things_coco_has_done_newcomers_should_know_and/ (Acesso em: 10 de junho de 2022).

iv O video humorístico de recrutamento para a Hololive English feito por Kiryu Coco:

https://www.youtube.com/watch?v=1I43s0oFbbk&t=9s (Acesso em: 10 de junho de 2022).

v Dados retirados do site: https://playboard.co/en/youtube-ranking/ (acesso em: 10 de junho de 2022)

vi Mais informações sobre a suspenção de Coco podem ser lidas em:

https://www.taiwannews.com.tw/en/news/4018580 (Acesso em: 10 de junho de 2022).

vii Site noticia o fim da Hololive China: https://www.animenewsnetwork.com/interest/2020-10-28/virtual-youtuber-agency-hololive-to-disband-hololive-cn-group/.165640 (Acesso em: 10 de junho de 2022).

viii Dados retirados do site: https://playboard.co/en/youtube-ranking/ (acesso em: 10 de junho de 2022).

ix “We shall survive in the memory of others” - Entrevista com Vilém Flusser, pode ser vista em: https://vimeo.com/150514386 (acesso em: 10 de junho de 2022).

x Dados retirados do site: https://playboard.co/en/youtube-ranking/ (acesso em: 10 de junho de 2022).

xi O caso foi noticiado por vários sites e mais informações podem ser lidas aqui: https://soranews24.com/2018/02/06/anime-girl-virtual-youtuber-unmasked-as-middle-age-male-otaku-loses-some-fans-gains-others%E3%80%90vid%E3%80%91/ (acesso em: 10 de junho de 2022).