Quando a datificação tem gênero
Produção de violência contra meninas e mulheres na internet


Cuando la datificación tiene género
Producción de violencia contra niñas y mujeres en internet


When datification has gender
Production of violence against girls and women on the internet


DOI:
https://doi.org/10.18861/ic.2025.20.1.3860


ALINE AMARAL PAZ

alineamaralpaz@gmail.com – São Borja – Universidade Federal do Pampa, Brasil.

ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0888-0781


SANDRA RÚBIA DA SILVA

sandraxrubia@gmail.comSanta MariaUniversidade Federal de Santa Maria, Brasil.

ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7548-5178


CÓMO CITAR:
Paz, A. A., & da Silva, S. R. (2025). Quando a datificação tem gênero. Produção de violência contra meninas e mulheres na internet. InMediaciones de la Comunicación, 20(1). https://doi.org/10.18861/ic.2025.20.1.3860


Data de recebimento: 1 de setembro de 2024
Data de aceitação: 19 de dezembro de 2024


RESUMO

O artigo é resultado de uma pesquisa com abordagem etnográfica focada na sistematização e análise de dados sobre meninas e mulheres produzidos em larga escala, de forma não consensuada e com apelo sexual e erótico. Estes dados circulam e estão disponíveis para serem partilhados massivamente através de plataformas da internet, fazendo parte do fenómeno de datificação que a sociedade contemporânea vive. Neste contexto, a investigação mostra como os processos de acumulação e comercialização de dados se entrelaçam com os problemas de gênero. Nesse sentido, a não neutralidade dos sistemas algorítmicos e o desinteresse das grandes plataformas em reduzir a violência digital contra as mulheres revela que os conteúdos produzidos sobre seus corpos fazem parte da matéria-prima que alimenta os mecanismos de dados.

PALAVRAS-CHAVE: dataficação, plataformas, género, violência contra as mulheres, etnografia.


RESUMEN

El artículo es resultado de una investigación con enfoque etnográfico centrada en la sistematización y el análisis de los datos de niñas y mujeres producidos a gran escala, de forma no consensuada y con atractivo sexual y erótico. Estos datos circulan y están disponibles para ser compartidos de forma masiva a través de plataformas de internet, siendo parte del fenómeno de datificación que vive la sociedad contemporánea. En este contexto, la investigación muestra cómo los procesos de acumulación y comercialización de datos intersectan problemáticas de género. En tal sentido, la no neutralidad de los sistemas algorítmicos y el desinterés de las grandes plataformas por reducir la violencia digital contra las mujeres revela que los contenidos que se producen sobre sus cuerpos son parte de la materia prima que alimenta los mecanismos de datos.

PALABRAS CLAVE: datificación, plataformas, género, violencia contra las mujeres, etnografía.


ABSTRACT

The article is the result of research with an ethnographic approach focused on the systematization and analysis of data on girls and women produced on a large scale, in a non-consensual manner and with sexual and erotic appeal. These data circulate and is available to be shared massively through internet platforms, being part of the datafication phenomenon that contemporary society is experiencing. In this context, the research shows how the processes of data accumulation and commercialization intersect with gender issues. In this sense, the lack of neutrality of the algorithmic systems, and the lack of interest of large platforms in reducing digital violence against women reveals that the content produced about their bodies is part of the raw material that feeds data mechanisms.

KEYWORDS: datafication, platforms, gender, violence against women, ethnography.


1. INTRODUÇÃO

A sociedade de dados é capaz de acomodar uma variedade de camadas e perfis que conectam diferentes pontos, para a teoria das redes (Venturini et al., 2018), diferentes nós e conexões, em diversos níveis, incluindo usuários, assuntos, grupos, links e servidores. Esses pontos podem variar de pequenos grupos com 10 membros a grandes comunidades com 100000 usuários ou mais. Essa dinâmica de sociabilidades em rede compõe a estrutura datificada que produz, de forma massiva e em grande escala, quantidades de dados sem precedentes. Esse fato sem precedência é de alguma forma alienado e naturalizado no cotidiano, como se sempre fosse assim, parte do que Shoshana Zuboff (2019) nomeia de capitalismo de vigilância.

Diante desse cenário, tanto homens quanto mulheres, entre outras possibilidades de corporalidades e definições, produzem imagens íntimas de si e as digitalizam para socializar na intimidade de suas relações. A priori, não há nada de violento nessa dinâmica de interações mediadas por tecnologias digitais de humanos hiperhíbridos (Santaella & Kaufman, 2021). No entanto, são meninas e mulheres que passam a ser vítimas do processo de circulação massiva desse fenômeno social contemporâneo. Retirados do contexto em que foram produzidos, os conteúdos transformam-se em um tipo de violência cometida em rede, potencializada pelo uso intensivo de smartphones e pelos processos de datificação. Esse movimento se afasta do que é conhecido por pornografia de vingança (Paz & da Silva, 2021).

A exposição dada pela ampla circulação desses conteúdos se distancia do padrão de pornografia de vingança por se tratar de um contexto massivo de produção de dados. Conforme os apontamentos da antropóloga Beatriz Accioly Lins (2019), essa modalidade de violência online, conhecida por pornografia de vingança, traduzida do inglês (Revenge Porn), geralmente está associada a situações afetivas e sexuais entre casais e ex-parceiros –indivíduos que possuem ou tiveram algum tipo de relação física, amorosa, e que frequentemente se relacionam com violência doméstica.

Lins (2019) relata a dificuldade em nomear esse fenômeno, destacando que suas interlocutoras, cujos materiais íntimos foram disseminados sem autorização, não identificam o crime como pornografia de vingança. Isso ocorre devido à associação direta entre práticas sexuais e nudez com uma carga moral ofensiva e obscena, vista como vergonhosa para as mulheres. Além disso, a compreensão de pornografia muitas vezes dissolve-se em apelos comerciais, como se todas as mulheres pudessem obter recursos ou valores em retorno pela exposição indevida.

Sob essas perspectivas, a disseminação de conteúdo íntimo criminosai em grande escala de meninas e mulheres é observada a partir da abordagem metodológica da etnografia para a internet (Hine, 2015), na qual foi possível analisar grupos em redes como no Facebook e outras, criados com objetivo de expor e comercializar tais conteúdos. Por questões éticas e de recorte metodológico, a pesquisa não trata de analisar os conteúdos imagéticos, mas sim, como eles ganham dimensões escalonáveis e negociadas que envolvem usuários e plataformas.

Quando a produção massiva e em grande escala de conteúdos íntimos com apelo sexual e erótico de mulheres é tratada na internet como commodity comercializável por meio de alianças entre plataformas, atores sociais, humanos e não humanos, seus corpos são reduzidos a códigos, links e pacotes. Esses dados são rastreáveis, perfilados e negociados, alimentando bancos de dados e sistemas algorítmicos. Por meio de aprendizado de máquina profundo com redes neurais artificiais generativas, o fenômeno conhecido como deepfake, vem se expandindo cada vez mais.

Os algoritmos aprendem, a partir da inserção de dados, como devem se comportar, o que devem prever, o que devem impulsionar, o que devem esconder e, através de programação de linguagem natural, aprendem como devem informar (Santaella & Kaufman, 2021). Nessa direção, os algoritmos são também processos históricos que recontam, recriam e criam narrativas textuais e imagéticas sobre as pessoas. As mulheres, nesse contexto, com seus corpos massivamente circuláveis em grandes quantidades de dados por meio de imagens sexuais e eróticas sem consentimento, passam a ser alvo da reprodução histórica que retroalimenta e reconta narrativas de submissão, dominação e servidão (Paz & da Silva, 2023).

A sociedade de plataforma (van Dijck, Poell & de Waal, 2019), o capitalismo de vigilância (Zuboff, 2019), o colonialismo de dados (Couldry & Mejias, 2018) e o colonialismo digital (Faustino & Lippold, 2023) são termos críticos e perspectivas analíticas desse cenário datificado. De acordo com Couldry e Hepp (2016), quatro ondas midiatizadas correspondentes ao contexto e momento histórico relativos à industrialização e aos meios de comunicação de massa antecedem a sociedade de dados. Contando a partir da mecanização, seguida pela eletrificação, digitalização e, por último, a dataficaçãoii, refere-se ao processo de coleta e extração de dados de pessoas e da internet das coisas, transformando a experiência humana de forma invisível e preditiva para fins econômicos e monopolizados.

A datificação, considerada a segunda era da internet, posterior à digitalização (Santaella & Kaufman, 2021), marca um outro nível de exploração e extração da experiência das mulheres transformadas em dados. Se, em um primeiro momento, a digitalização de conteúdos de mulheres torna acessível e distribuível aos usuários em rede materiais de forma não consentida e criminosa, os processos datificados lucram com o tráfego em larga escala de dados gerados a partir de conteúdos íntimos e com apelo sexual de meninas e mulheres, contando com a cumplicidade entre atores sociais e plataformas.

Nessa direção, a internet e as tecnologias em rede se configuram em espaços para disputas patriarcais, formadas e organizadas por sistemas de alianças e fraternidade masculina. Estes se materializam na exploração e expropriação de dados dos corpos das mulheres.

Diante do exposto, este artigo busca refletir sobre o fenômeno de datificação e as relações generificadas que permeiam os territórios digitais, revelando a não neutralidade da produção de dados e situando processos datificados a partir da acumulação e circulação massiva de dados de mulheres sem consentimento. Para isso, são apresentadas duas seções: a primeira discute a datificação e problemas de gênero; a segunda aponta tais processos e violências contra meninas e mulheres na internet como extensão do homem.


2. A DATIFICAÇÃO TEM GÊNERO?

Segundo Couldry (2019), a dataficação assume na contemporaneidade um papel na construção e reconstrução do mundo social e coletivo, para transformar todos os aspectos da vida em dados. Em entrevista com Campanella (2019), o autor aborda que, para além do desenvolvimento do sistema capitalista, esta configura-se por uma nova fase na experiência humana, na qual a quantificação de todos os seus aspectos, convertida em dados comercializáveis, se torna a ordem social e econômica a partir da apropriação e extração contínua da vida. Um outro estágio do colonialismo se organiza no mundo contemporâneo: o colonialismo de dados.

A dataficação transforma a relação entre humanos, não humanos, coisas e objetos em dados de monitoramento, vigilância, cruzamento de dados e predição com o propósito de mercado (Couldry & Mejias, 2020; Silveira, Souza & Cassino, 2022). Em outras palavras, a dataficação e suas narrativas de customização, personalização, gratuitidade e conveniência (Poell, Nieborg & van Dijck, 2020) organizam toda a estrutura social, desde as sociabilidades, produção e agenciamento de conhecimento, até a relação com a natureza, traduzindo e manipulando a vida em dados rastreáveis, quantificáveis, analisáveis e performativos (Lemos, 2021).

Para Lemos (2021), a dataficação é a interferência e mediação das formas de sociabilidades realizadas por meio de plataformas ou aplicativos, tomando conta de todos os aspectos relacionais da vida. Ou seja, a produção e coleta contínua de dados sobre relacionamento, habitação, educação, saúde, transporte, comércio, setor bancário, entre outros. A existência dataficada perpassa também processos de produção e reprodução do conhecimento altamente agenciado por dinâmicas digitais e tecnológicas. Além disso, interfere na natureza ao passo que produz, sem precedentes, grandes quantidades de lixos eletrônicos e utiliza de forma irresponsável os recursos naturais.

Nesse cenário, as discussões ciberfeministas apontam como as tecnologias não são neutras, embora forjem em suas estruturas materiais e simbólicas noções de objetividade e neutralidade algorítmica (Natansohn, 2013). Dito de outra forma, a internet, com todos os processos derivados de tecnologias da comunicação, informação digital e produção de dados, possui não apenas gênero, mas também raça, classe, idade, localização, entre outras intersecções interpeladas intersecções interpeladas por processos históricos tecnológicos (Wajcman, 2012; Benjamin, 2019).

Sob essas perspectivas, a datificação é atravessada pelas dinâmicas sociais de reprodução sistemática de gênero, que perpetuam relações de violência contra as mulheres em todos os espaços, para esta pesquisa, a partir da ampla circulação, comercialização e acumulação de dados relativos a conteúdo com apelo íntimo e sexual de mulheres sem consentimento.

Os pacotes circuláveis com conteúdo de meninas e mulheres são transformados em lances de conjuntos de dados, que retratam a forma como a internet se configura no território para objetificação abstrata do corpo feminino. Suas imagens e vídeos se tornam parte das dinâmicas de públicos invisíveis, borramento de fronteiras entre público e privado e colapso de contextos, persistindo ao tempo de forma buscável e replicável (Boyd, 2014), escalonando os circuitos digitais como um produto/objeto infocomunicacional.

Configurados em dados quantificáveis em larga escala, os conteúdos de meninas e mulheres representam esquemas patriarcais do pensamento (Saffioti, 2000), revelando quais produtos culturais são relevantes e potentes em rede e como funcionam as tecnologias de gênero (de Lauretis, 1994). Desta forma, dados são fenômenos culturais, políticos e econômicos, tanto quanto técnicos (Tomaz & Silva, 2018).

Nessa direção, os processos sociais incorporados e corporificados na internet (Hine, 2015), por meio de plataformas, mídias sociais e sistemas de dados, inteligência artificial e aprendizado de máquina, tensionam a tecnologia, para além de reprodutora social, é também sociotécnica (van Dijck, Poell & de Wall, 2019), pode ser intensificadora e amplificadora de violências de gênero direcionadas às mulheres (Valente & Neris, 2019; Natansohn, 2020; Paz & da Silva, 2022).

Embora haja diferenças conceituais, contextuais e metodológicas, os processos datificados se encontram em elaborações do sistema social e econômico baseado na transformação de toda experiência humana como matéria-prima gratuita para a produção, extração e acumulação de dados rentáveis, a serviço de um pequeno monopólio de grandes empresas, entendidas por GAFAM: Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft (Couldry & Hepp, 2018; van Dijck, Poell & de Waal, 2019; Lemos, 2021; Zuboff, 2019; Silveira, 2021).

O ecossistema coordenado por um modelo de negócio orientado à expropriação de conteúdos de mulheres cria, com ampla facilidade, espaços predatórios de seus corpos. Aqui, as lógicas do mercado se tornam evidentes, observadas por práticas de venda, lei da oferta e demanda e tráfico de conteúdo sem consentimento. Por apenas $5,00 (na moeda do real brasileiro), como foi observado no campo etnográfico por meio de grupos criados na plataforma do Facebook para expor meninas e mulheres de forma criminosa, é possível adquirir pacotes com conteúdo íntimo, acessíveis por tempo indeterminado e com acesso vitalício. Esse fenômeno é característico de uma época e contexto altamente conectados e multimidiáticos.

Desta forma, os conteúdos se tornam circuláveis e comercializáveis por indivíduos que não possuem nenhum contato ou vínculo com as vítimas. Sem nenhum tipo de relação próxima ou íntima, tais conteúdos são agenciados entre usuários e plataformas, se afastando da compreensão de pornografia de vingança, que antecederia a uma relação pessoal, afetiva e/ou amorosa. Essa produção de dados generificada em escala é operada por usuários desconhecidos, e, em grande parte, anônimos nos ambientes digitais, em cumplicidade com as plataformas que acolhem tais conteúdos e demais práticas em torno da disseminação sem consentimento de materiais íntimos de mulheres.

Os algoritmos não são neutros e acabam por facilitar o acesso aos perfis de meninas, uma vez que as buscas e pesquisas na internet modulam perfis e direcionam conteúdos, agendas e usuários conforme os históricos digitais e trajetos orientados por dados. Diante desse contexto, o rastreamento e a modulação de comportamento por meio do capitalismo de plataforma atuam como modelo de negócio, organizando as relações e interações, capturando, extraindo e acumulando dados pessoais para os interesses das big techs (van Dijck, Poell & de Waal, 2019; Silveira, 2017). Sob esse prisma, a cultura algorítmica, construída por marcadores da diferença, de maneira visceral, reproduz lógicas de desigualdades, incluindo, sobretudo, obter lucro de corpos que historicamente foram mais explorados (Carrera, 2020; Benjamin, 2019).

Na sociedade de dados, as buscas realizadas pelos dispositivos tecnológicos são impulsionadas por conjuntos de dados acumulados do usuário, compostos por camadas perfiladas. Esses dados transformam cliques em conjuntos de informações com base nas referências registradas. A falta de neutralidade algorítmica resulta na incorporação de vieses de gênero e raça, levando a resultados sexistas, racistas e excludentes (Striphas, 2015; Silveira, 2017; Benjamin, 2019; Carrera, 2020).

Ao discutir as condições nas quais a cultura do algoritmo se desenvolveu e para onde se direciona, Ted Striphas (2015) aponta que os bancos de dados sobre indivíduos online fazem a manutenção de um sistema que transforma como a cultura é vivida e sentida, organizada pelas plataformas. O autor afirma que os algoritmos se tornam decisivos, e “empresas como Amazon, Google e Facebook estão se tornando rapidamente, apesar de sua retórica populista, os novos apóstolos da cultura” (Striphas, 2015, p. 407).

Ao questionar se a tecnologia tem gênero, Judy Wajcman (2012) discorre sobre o processo histórico-cultural em que a tecnologia foi cristalizada por elementos ditos masculinos, ligados às engenharias e à lógica industrial. Em contrapartida, as tecnologias das mulheres, ligadas à terra, à cozinha e à lógica artesanal, são hierarquicamente rebaixadas. Esse processo alimenta noções que associam as mulheres à incapacidade de trabalhar com a tecnologia e estabelece que a competência tecnológica é um atributo masculino, enquanto a falta dela é vista como um estereótipo feminino, em função da binaridade e oposição que fundam as relações de gênero.

Essas percepções moldam um sistema social de divisão do trabalho entre homens e mulheres. Em diálogo com Wajcman, as autoras Valente e Néris (2019) afirmam que a dominação masculina é incorporada nos artefatos digitais e tecnológicos pela exclusão das mulheres desses espaços. Isso é resultado de um processo que associa a tecnologia à masculinidade e a falta de habilidade tecnológica à feminilidade. Nesse sentido, a tecnologia é atribuída a um gênero específico, "a cultura dos computadores era predominantemente a cultura dos homens brancos estadunidenses" (Wajcman, 2012, p. 120).

Susana Morales, Graciela Natansohn e Kemly Camacho (2022) apontam práticas políticas e artísticas desenvolvidas por movimentos feministas comprometidos com direitos humanos e direitos das mulheres, autodenominados como hackfeminismo, ciberfeminismo e tecnofeminismo. Preocupadas com a extração, acumulação e análise de dados pessoais como modelo de negócio para apropriação capitalista e produção social, as autoras entendem os dados na internet como matéria-prima para o funcionamento desse sistema mediado por hardwares e softwares.

Nessa direção, elege-se como uma questão central relativa aos estudos de tecnologias digitais, a partir de análises interseccionais centradas na região latino-americana, a relevância de “identificar, caracterizar e potencializar iniciativas emancipatórias na construção de outra tecnologia, particularmente tecnologias digitais alternativas por parte de movimentos feministas” (Morales, Natansohn & Camacho, 2022, p. 34).

A disparidade de gênero incorporada às tecnologias resultou nas desigualdades que constituem as culturas digitais. Segundo Natansohn (2013), “a diferença digital de gênero é global” (p. 19). A história dos jovens do “Vale do Silício” e os desdobramentos tecnológicos resultantes são bem conhecidos, destacando-se os nomes e gêneros mais proeminentes. Nesse contexto, a invisibilidade e a escassez da participação das mulheres na sociedade da informação e tecnologia marcam a exclusão estrutural delas nesses espaços, especialmente em decisões sobre a infraestrutura física e lógica das redes.

Considerando que as plataformas são estruturalmente masculinizadas e perpetuam lógicas patriarcais, tornam-se, igualmente, as principais facilitadoras desse ecossistema. A negligência real e prática em relação aos conteúdos de natureza sexual e erótica envolvendo mulheres, amplamente difundidos, evidencia a cumplicidade subjacente a essas práticas de consumo e disseminação de conteúdo que alimenta bancos de dados e sistemas datificados, que sem precedentes, classificam, categorizam e perfilam meninas e mulheres.

Nesse sentido, essa pesquisa está alinhada com os argumentos de Paz Peña Ochoa (2019) sobre a pornografia não consensual referente à exposição não autorizada de conteúdo em ambientes digitais. O modelo de negócio das plataformas não tem interesse em acabar com essa exposição não autorizada dos corpos das mulheres, estes são fontes inesgotáveis de geração de dados, portanto, de lucro e poder. Em outras palavras, o corpo das mulheres é tratado como um produto rentável, sendo utilizado como informação altamente produtiva e circulante nos ambientes digitais. Isso resulta em uma indústria de dados bastante vantajosa para as grandes empresas da internet.

Conforme Ochoa (2019):

Sim, a punição é a publicação de material íntimo da vítima. Mas, nas sociedades devotadas aos dados, a sanção social não se esgota aí, mas sim na possibilidade de que essa imagem erótica ou sexual seja mais uma informação para traçar o perfil do comportamento das mulheres. Em outras palavras: uma coisa é mostrar uma imagem sexual a um terceiro sem consentimento –mesmo identificando nome e sobrenome– e outra bem diferente é saber que no momento de sua publicação a imagem se torna um dado íntimo que potencialmente pode ser a um perfil pessoal completo que terá nomes, moradas, amigos, gostos, opiniões, estados de espírito, currículo, paradeiro, etc., e ao qual não sabemos quem terá acesso, para que fins, por quanto tempo, e sob quais condições. (p. 78)

Esse cenário não apenas molda, quantifica e categoriza subjetividades, mas também reforça padrões patriarcais profundamente enraizados, que são inerentemente capitalistas. Ao coletar dados sobre os corpos das mulheres, como informações sobre ciclos e fertilidade, desempenho sexual, alimentação e peso, por meio de vigilância digital constante e silenciosa, pode-se controlar esses corpos em prol desse sistema. Isso se reflete na disseminação não consensual de conteúdo íntimo com conotações sexuais e eróticas de meninas e mulheres, tornando-se mais uma engrenagem na máquina acumulativa infocomunicacional incorporada ao modelo empresarial de plataforma, revelando que o fenômeno de datificação não pode ser pensado sem considerar problemas de gênero, entre outras intersecções.


3. DATIFICAÇÃO E VIOLÊNCIAS CONTRA MULHERES NA INTERNET COMO EXTENSÃO DO HOMEM

O trocadilho com a expressão célebre de McLuhan (2007), extensão do homem, é usado aqui para mostrar a fantasia da neutralidade ao se referir por “homem”, querendo concluir por “humanidade”. Para este artigo, busca-se, além disso, evidenciar o caráter generificado da produção de violência contra meninas e mulheres em ambientes digitais. Dito de outra forma, se McLuhan quisesse especificar na linguagem os cuidados enunciativos de forma não universal, ele diria: os meios de comunicação como extensão da humanidade. No entanto, a definição descrita em 1969 pelo autor –os meios de comunicação como extensão do homem– é bastante apropriada hoje, dado o fenômeno social da violência produzida e reproduzida pela masculinidade hegemônica por meio da internet (Welzer-Lang, 2001; Zanello, 2020).

As violências direcionadas às mulheres se manifestam através de diversas ações, tais como assédio, ameaças, compartilhamento não consensual de conteúdo íntimo, invasão de privacidade e cyberbullying. Essas formas de violência refletem uma cultura misógina que é atravessada por diferentes interseccionalidades, como raça, sexualidade e idade. São processos culturais que perpetuam relações violentas contra as mulheres em todos os âmbitos sociais, incluindo os espaços digitais públicos e privados (Natansohn & Goldsman, 2018).

Nesse sentido, as mulheres são ameaçadas ou expostas na internet com conteúdo íntimo e apelo sexual não porque tiveram uma relação próxima/afetiva/amorosa que resultou em um término trágico e, por consequência, foram expostas sem consentimento, fenômeno conhecido também como pornografia de vingança. Trata-se de casos determinados por fatores sociais que se estendem nos territórios online mediados pela cultura generificada que vê no corpo feminino um meio de exercício de poder, dominação e exploração, tendo ou não, relação e proximidade. Os processos de datificação redimensionam esse cenário, que passa a acumular e circular conteúdos íntimos de mulheres em diferentes formatos escalonáveis e rentáveis para usuários e plataformas.

Os dados a seguir, analisados por meio de perambulações, acompanhamentos e imersões etnográficas (Leitão & Gomes, 2017), no período de 2020 a 2023, mostram a plataforma do Facebook como território de acumulação e expropriação de conteúdo de meninas e mulheres. Dezenas de grupos são criados com pacotes de dados para realização de downloads gratuitos e pagos, contendo mídias em fotos e vídeos de meninas a partir de treze anos de idade. Os conteúdos não estão restritos a esta rede, sendo direcionados através de links adicionais ao Telegram, Instagram, Youtube e Discord.

A imersão no perfil no Instagram @mike_vazados, citado nos comentários de um vídeo no Youtube, levou ao grupo no Facebook, chamado Vídeos Vazados –grupo privado com 322 membros, em 2021–. Após a solicitação da pesquisadora para entrada no grupo (que levou em torno de 4 horas para ser aceita), a primeira publicação mostrava uma categorização de conteúdos conforme a idade das meninas, que estavam disponíveis em pacotes de imagens e vídeos, intitulados como: “sub 15 no banho; sub 16; sub 17”, cada pacote continha conteúdos íntimos não consensuais de meninas menores de idade. Grande parte dos comentários e publicações estavam em torno de “troco conteúdos”, “troco links” e “vendo conteúdos”, contendo comentários como: “promoção mil vídeos por $25,00”, além de quantidades de links de grupos no Telegram e outros com identificação de fotos, nomes e demais informações pessoais das meninas.

Com a busca pelas palavras-chave vídeos vazadosiii, mostra a facilidade do acesso –entre grupos fechados e públicos, encontram-se dezenas desses espaços exclusivos para consumo de conteúdo desautorizado de mulheres–. Nas primeiras buscas, foi possível encontrar grupos nomeados como: “Vídeos vazados”, “Vídeos vazados.com”, “Links de grupos e canais do Telegram de vídeos vazados” e “Vídeos vazados zoeira”. Tais grupos, de modo muito articulado, circulam materiais em formatos mais e menos privados, abertos e segmentados. Esses conteúdos são monetizados tanto por usuários quanto por plataformas, na medida em que geram lucro em torno de pacotes de conteúdos transformados em dados, criando uma imensa circulação de informação rentável que são armazenadas nas redes, computadores, smartphones e centros de processamentos de dados.

Esses grupos se replicam de forma escalonável em diferentes plataformas, onde os dados de meninas e mulheres são redistribuíveis e altamente circuláveis a partir de processos de comercialização dos pacotes de dados. Distribuem em redes cotidianas diversos conteúdos e quantidades de imagens e vídeos que podem ser acessados por qualquer pessoa, a qualquer momento.

Na plataforma Discordiv, é possível encontrar inúmeros servidores de consumo de conteúdos íntimos de meninas e mulheres. Nessa rede, os grupos são organizados por categorias, etiquetas e temas em comum. Os servidores no Discord podem ser avaliados e recebem classificações de acordo com atividades ativas, como número de membros, curtidas e usuários online nos chats, onde compartilham links internos de grupos privados. Adentrar um grupo pode significar a entrada para muitos outros, com direcionamento através de fluxos entre links e acesso a múltiplos servidores. Além disso, é possível realizar chamadas de voz e vídeo com uma ou mais pessoas.

Servidores que compartilham conteúdo sem consentimento, encontrados a partir da busca com as palavras-chave vídeos vazados, são nomeados como: “Safadeza e putaria, OnlyFans gold, Inccubu’s dream, Casa do Kame, Elite das putarias 2.0”. Nesses servidores foi possível encontrar publicações de usuários informando sobre a venda de packs (pacotes com conteúdo íntimo de meninas e mulheres), ou, procurando por conteúdos de mulheres sem consentimento, tornando comum perguntas como: “alguém aí tem o pack da professora do Tiktok?”, ou “Quero fazer uma call íntima (chamada de vídeo) com alguma gata, pago”. Nessas chamadas é habitual a gravação para posteriormente compartilhar em grupos ou vender os conteúdos na plataforma e em outras redes. Além destes, são inúmeros outros grupos para consumo de conteúdo com apelo sexual e erótico de mulheres, sem nenhum tipo de constrangimento legal relativo ao compartilhamento desautorizado.

Os nomes dos servidores são aleatórios e não fazem referência à disseminação não consentida, tornando-os mais difíceis de localizá-los e mais anônimos. Juliano Spyer (2018) dá pistas para entender sobre formas alternativas de sistemas linguísticos utilizados para compartilhar informações em rede por jovens. O autor chama de criptografias do discurso, quando usuários podem dizer coisas e compartilhar conteúdo sem necessariamente serem encontrados. Para isso, utilizam outras linguagens, descrições e caminhos digitais que não fazem alusão, distorcem ou revelam parcialmente o que realmente pretendem dizer ou fazer.

Em um servidor nomeado por “OFG HOT”, são notadas as regras que informavam: “conteúdo vazado - postar somente fotos, vídeos e (solicitações) para pedir vídeos vazados”, referindo-se a livre disseminação por meio de fotos, vídeos e solicitações. No entanto, uma frase após as três regras, descreve: “para denunciar alguma pessoa só ir na aba denúncia”, causando a impressão de que o servidor é preocupado com possíveis violações cometidas em rede. A dissociação da prática de disseminação de conteúdo sem consentimento e crime, mostra que usuários e plataformas não percebem a ação como um delito criminoso que fere a existência e consentimento de meninas e mulheres, estando certos da cumplicidade e impunidade.

Esse cenário de projeto capitalista que envolve a sociedade de plataforma (van Dijck, Poell & de Wall, 2019), naturaliza as violências tornadas irrefletidas em sociedades com bases patriarcais. Torna-se comum a grande produção de dados de mulheres na internet, caracterizado pelo consumo, troca e venda sem ressalvas de conteúdos íntimos sem consentimento. Entre frases frequentes nos grupos pesquisados, destaca-se: “Alguém tem uma pasta de vazamentos +18?”, dita em um chat no Discord. Este tipo de comentário é recorrente, habitual e banal, desencadeando outros como: “vendo packs de menores de 18”, “compro packs agora, é só chamar” e “procurando alguém para conversar sobre minas (trocar conteúdo de meninas)”.

A descrição de um grupo no Discord, autodenominado por “um canal reserva”, que pressupõe de antemão a existência de um canal oficial, apresenta prévias de conteúdo vip, os quais os usuários terão acesso mediante a pagamentos a partir de $5,00 – “8 grupos com todos os conteúdos acima: OnlyFans, sub 15 (indicando arquivos de meninas de 15 anos) vazados, vazados caseiros, lives vazadas e um monte de conteúdos (vídeos infinitos e atualizados)”, afirmando o “acesso vitalício” aos conteúdos, com a possibilidade de visualização de prévias no servidor principal que direciona para outro link de acesso na plataforma do Telegram.

Ao acompanhar o chat do servidor que abriga 8.333 membros (dados de setembro de 2022), nota-se que um link para acesso a outra comunidade composta por 3.149 membros, é compartilhado. Esses números revelam o fluxo de tráfego entre esses grupos e a quantidade de membros que compartilham os dados.

Esse cenário começa a se desenhar mostrando a coleta, extração e comercialização de grandes quantidades de dados relativos aos corpos e intimidade de mulheres, no qual as plataformas agem em cumplicidade com usuários na medida em que tais dados circulam entre as redes de forma livre e lucrativa para ambas as partes. Essa cumplicidade tácita resulta em produtos culturais hipersexualizados de corpos femininos, formando ecossistemas de dados distribuídos entre plataformas cotidianas da internet, configurando-se em dados infocomunicacionais de processos datificados.

Nessa direção, a autorização pública para violentar o corpo feminino em ambientes físicos é perpetuada e garantida nas ruas digitais. Podemos entender como processo de territorialização que está além do domínio geográfico, é também simbólico (Saffioti, 1999). Ademais, nesse contexto em que as relações sociais são mediadas por artefatos tecnológicos, as tecnologias de gênero (de Lauretis, 1994), atravessam a experiência humana e não-humana por meio de dispositivos e ambientes online (Natansohn & Reis, 2020).

A violência cometida contra mulheres é organizada pelo mandato de masculinidade, que está além de práticas sexistas e machistas, compondo um sistema mafioso que gerencia a organização social sistematicamente capitalista. Essa estrutura requer a espetacularização cruel com os corpos das mulheres em público, tendo menos a ver com vingança, ódio e relações interpessoais e mais a ver com o cenário bélico contra corpos específicos, atualizado nas suas técnicas e tecnologias (Segato, 2018). Trata-se de uma estrutura condicionada a provar sistemática e consistentemente quem manda e quem é o dono dos espaços públicos. Se historicamente esse é o retrato de sociedades patriarcais, a internet se torna a extensão perfeita para manutenção da sua força.

Ao discutir o perigo de predadores sexuais na internet, a pesquisadora de culturas juvenis e mídias sociais, Danah Boyd (2014), faz importantes ressalvas relativas a pânicos morais e à origem de medos reais ou distorcidos que assombram adultos quanto à participação online de crianças e adolescentes. De acordo com a autora, tais medos se fundamentam através de um velho temor sobre o acesso de juventudes em espaços públicos e são incorporados com restrições sobre o uso das tecnologias. Em outras palavras, o perigo de estranhos desconhecidos não surge com os ambientes digitais. Logo, “a predação sexual não começou com a internet, nem parece que a internet tenha criado uma epidemia predatória” (Boyd, 2014, p. 102).

Embora certas narrativas sobre a existência de predadores sexuais na internet possam gerar temores infundados e incitar uma cultura do medo reproduzida nas práticas realizadas por meio das tecnologias de comunicação, a autora ressalta que os ambientes digitais são reproduções de espaços e práticas que antecedem sua existência. Nessa direção, as ruas digitais são ocupadas por indivíduos que estendem e incorporam seus fazeres, usando a tecnologia a favor das interações que desejam realizar e ampliar, criando “ruas digitais que ajudam a definir os públicos em rede nos quais se reúnem” (Ibid., p. 127). Em outras palavras, os comportamentos adotados em rede, que organizam grupos, links, sites, chats, comunidades e servidores, são extensões continuadas de práticas da vida social incorporadas à tecnologia.

A internet pode não ter originado uma epidemia predatória, mas facilita o encontro de atores sociais que transformam as redes em casas dos homens (Welzer-Lang, 2001), promovendo e prolongando a manutenção do sistema de dominação/exploração através de usos e práticas das tecnologias. Dessa forma, as violências sofridas pelas mulheres em ambientes digitais derivam dessa estrutura histórico-cultural que há muito tempo autoriza e perpetua relações violentas com os corpos femininos.

Natansohn (2020), em consonância com o pensamento de Segato (2018), discute a dimensão comunicativa das formas violentas direcionadas às mulheres nos ambientes digitais, que cresceram durante a pandemia do COVID-19. Ela argumenta que os ataques e perseguições contra mulheres e minorias se profissionalizaram e se aperfeiçoaram ao longo do governo bolsonarista, tornando-se uma política de ódio paragovernamental.

Em outras palavras, as tecnologias de comunicação e informação digital servem como ferramentas que criam espaços para a aplicação de violência contra as mulheres. Essas violências são promovidas tanto pelo Estado quanto pelas plataformas digitais, entre sujeitos e práticas patriarcais. Natansohn (2020) destaca a desigualdade de acesso às tecnologias e à internet com relação a gênero, classe social, raça, orientação sexual, território e idade, observando que há uma escassez de dados confiáveis sobre violências de gênero em ambientes digitais, além de ressaltar a alta subnotificação dessas ações.

As divergências de um sistema social organizado pelas masculinidades sustentam desigualdades de gênero e padrões estereotipados que são constantemente revitalizados nas redes. Embora esteja sempre em movimento, sujeito a transformações, a tecnologia, quando vista sob o ângulo da não neutralidade de gênero, implica na exclusão sistemática das mulheres dos processos técnicos e científicos. Ao mesmo tempo, em contraste, os sistemas de dados contemporâneos perpetuam a inclusão sistemática e massiva do corpo erotizado e sexualizado das mulheres como objeto de comunicação, informação, troca e venda.

Os conteúdos de meninas e mulheres que circulam na internet sem autorização, transformados em grandes quantidades de dados, tornam-se facilmente editáveis, recortáveis e transformáveis por meio de réplicas e compartilhamentos atemporais. Esses conteúdos são ainda mais expostos à automatização da inteligência artificial, resultando nos chamados “deep fakes pornográficos”, nos quais o rosto, frequentemente de uma mulher, é digitalmente inserido no corpo de outra pessoa. Esse fenômeno cria um mercado comunicacional que desperta interesse não apenas entre os usuários, como também se torna vantajoso para o modelo de negócio das plataformas que lucram, geram tráfego e sociabilidades datificadas.


4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A circulação de conteúdo não consensual de meninas e mulheres na contemporaneidade está menos relacionada ao desejo e às relações sociais de intimidade, e mais relacionada a uma lógica patriarcal vinculada ao capitalismo de dados e de plataforma, possível e amplificado pelo cenário de datificação. Nesse contexto, os corpos das mulheres são usados como informação para alimentar as plataformas e engajar sistemas algorítmicos. Em outras palavras, a disseminação não consentida e criminosa de conteúdos íntimos femininos se transforma em conjuntos de dados massivamente rentáveis para usuários e empresas da internet.

Nesse contexto, o conteúdo relativo aos corpos de meninas e mulheres sem o devido consentimento torna-se um mercado comunicacional de produção algorítmica lucrativo para plataformas e usuários envolvidos e associados a tais práticas, que são organizadas na contemporaneidade por aprendizado de máquina com inteligência artificial generativa e acumulação predatória de dados pessoais.

As plataformas possuem grande agência e responsabilidade na produção de espaços criminosos de produção de dados sem consentimento, na medida em que possuem meios tecnológicos e algorítmicos para impedir tal fabricação. Isso pode ser observado em grandes ambivalências que organizam as lógicas das redes. A remoção arbitrária de conteúdos compartilhados por mulheres desnudas, por exemplo, é realizada através de políticas que restringem imagens de nudez e amamentação. Essas políticas são nomeadas por "conteúdo inapropriado, sexuais e pornográficos", mostrando como o aprendizado de máquina profundo gerenciado pelas plataformas pode identificar imagens pelas quais foi treinado, possuindo tecnologia possível de inclusão e exclusão de dados.

Em modos específicos, direcionados aos corpos das mulheres, são reforçadas políticas de censura e valores morais patriarcais. Ao mesmo tempo, agenciam com medidas preventivas ineficazes os espaços que circulam conteúdos íntimos de mulheres sem consentimento, evidenciando o interesse econômico com o consumo e a geração de tráfego desse tipo de conteúdo compartilhado em grande escala.

Esse corpo que viraliza e se torna produto potencialmente eterno para os bancos de dados que se cruzam, combinam e somam informações na busca por determinar um perfil, são coordenados por esse ecossistema de redes e plataformas que, de maneiras múltiplas e arbitrárias, desanonimiza as vítimas. Listas com nomes de mulheres que viralizaram por conteúdo sem consentimento estão indiscriminadamente acessíveis para os usuários, que podem, por exemplo, segui-las em seus perfis pessoais, profissionais, entre outros, para ameaçá-las e expô-las novamente e quando quiserem. Expor a vítima, nos seus mais altos graus de implicação de privacidade, além do corpo, do nome e de outras informações particulares, conecta por meio de motores de busca, material gráfico e imagético com nome e perfis sociais nas redes.

Nessa direção, sistemas datificados são coordenados por um modelo de negócio orientado a expropriação de conteúdos de e sobre mulheres, cria com ampla facilidade espaços predadores de seus corpos, onde lógicas do mercado são notadamente observadas por práticas de venda, lei de oferta e demanda, nas praças públicas digitais. Por $5,00 (na moeda do real brasileiro) é possível comprar pacotes com conteúdo íntimos sem consentimento que poderão ser acessados por tempo indeterminado e com acesso vitalício, sendo distribuídos, circuláveis e recompartilhados, educando algoritmos de aprendizado de máquina sobre o tratamento de dados relativo às imagens e vídeos com os corpos de mulheres.

As redes públicas e privadas de indivíduos e plataformas tornam-se elementos centrais. Por meio de concentração e acúmulo de dados relativos aos corpos das mulheres, sem qualquer vínculo antecedente, essas redes fabricam incontáveis espaços digitais voltados para a disseminação de conteúdo sem consentimento. Incluem-se nessas redes o Facebook, Instagram, Youtube, Telegram e Discord, mostrando o caráter cotidiano da circulação desses conteúdos, que não estão mais apenas em sites pornográficos escondidos na internet.

Por ser a violência de gênero contra as mulheres uma situação social e cultural organizada por lógicas de estruturas produtoras de desigualdades, compreende-se a necessidade de pensar na implementação prática de políticas públicas voltadas para combater as violências incorporadas nestes locais, a partir de aspectos específicos de gênero e regulamentação das plataformas. É insuficiente apenas a penalização de usuários e a conscientização sobre consentimento, uma vez que as plataformas fornecem a estrutura para o consumo e comercialização de conteúdos íntimos de mulheres, e precisam necessariamente ser reguladas prevendo tal fenômeno. Além disso, é necessário cobrar de forma adequada a ação permanente que as plataformas devem adotar para a criação de recursos efetivos de cuidado, redução e combate às violências em ambientes online.


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* Contribuição dos autores:
Pesquisa e escrita do artigo: Aline Amaral Paz / Orientação e revisão: Sandra Rúbia da Silva.

* Nota: o Comitê Acadêmico da revista aprovou a publicação do artigo.

* O conjunto de dados que apóia os resultados deste estudo não está disponível para uso público. Os dados da pesquisa serão disponibilizados aos revisores, se necessário.


Artículo publicado en acceso abierto bajo la Licencia Creative Commons - Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).


IDENTIFICAÇÃO DOS AUTORES


Aline Amaral Paz
. Doutora e Mestre em Comunicação pela Universidade Federal de Santa Maria (Brasil). Graduada em Comunicação Social pela Universidade Federal do Pampa (Brasil). Professora na Universidade Federal do Pampa, com atuação no curso de graduação em Publicidade e Propaganda. Interesses de pesquisa: culturas digitais, sociedade de dados e plataformas, estudos de consumo e relações de gênero.

Sandra Rúbia da Silva. Doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catariana (Brasil).  Mestre em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil). Professora Associada do Departamento de Ciências da Comunicação e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria (Brasil). Coordenadora do Grupo de Pesquisa “Consumo e Culturas Digitais”.


i Considera-se que crianças e adolescentes são protegidos por legislações como o Estatuto da Criança e do Adolescente e pela Lei 11829/2008 que buscou aprimorar o ECA no “combate à produção, venda e distribuição de pornografia infantil, e criminalizar a aquisição e a posse de tal material e outras condutas relacionadas à pedofilia na internet”. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11829.htm.

ii Datificação e dataficação são termos que alteram de acordo com diferentes autores(as) e traduções, embora não se observem diferenças conceituais que modifiquem o significado de termos empregados nesta pesquisa.

iii Vazados é um dos termos usados na linguagem digital para informar sobre conteúdos disseminados na internet sem consentimento. Além deste, outros também podem ser associados ao fenômeno, como pornografia de vingança.

iv Dados do Discord, plataforma lançada em 2015, inicialmente para gamers, embora 70% dos usuários utilizam para atividades que não envolvem jogos, mostra que triplicou a sua base de membros em menos de um ano e, até 2022, são mais de 300 milhões de usuários na rede. Nessa plataforma, para entrar em um servidor (nome dado às comunidades), basta aceitar um convite enviado através de um link, que podem ser públicos e privados, além disso, criam salas de conversas anônimas (Noleto, 2021).