Um
retrato
de coragem
Desafios
da narrativa jornalística de guerra frente à atorização sociali
Un
retrato
de valentía
Desafíos
de la narrativa periodística de guerra frente a la actorización
social
A
portrait
of courage
Challenges
of war journalism narrative in the face of social actorization
DOI:
http://doi.org/10.18861/ic.2025.20.1.4075
ANA PAULA DA ROSA
anarosa@ufrgs.br – Porto Alegre – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil.
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7461-2278
CÓMO CITAR: Rosa,
A. P. (2025).
Um retrato de coragem.
Desafios da narrativa jornalística de guerra frente à atorização
social. InMediaciones
de la Comunicación, 20(1).
http://doi.org/10.18861/ic.2025.20.1.4075
Data de recebimento: 3
de fevereiro de 2025
Data de aceitação: 5 de maio de 2025
RESUMO
Este artigo tem por objetivo problematizar as narrativas jornalísticas e midiatizadas produzidas em torno de um acontecimento midiático-jornalístico tecido pela revista Vogue, em 2022, a partir de uma reportagem com o presidente da Ucrânia, e sua esposa, Olena Zelenska. A publicação constrói uma abordagem em torno de um “retrato de coragem”, materializado pelas fotografias de Annie Leibovitz, com o casal ucraniano posando em meio aos escombros da guerra. Tal acontecimento desloca-se para a esfera da atorização social, que não somente questiona o fazer jornalístico como, a partir da didatização de suas lógicas e habilidades coletivas narrativas (Albuquerque, 2000; Soster, 2023), passa a agenciar o fluxo da circulação (Fausto Neto, 2013; Rosa, 2020) a partir das plataformas digitais. Na observação dessa processualidade emerge a pergunta que norteia este trabalho: de que maneira o jornalismo da Revista Vogue se vê tensionado por narrativas de atores sociais? E como a atorização afeta as disputas de sentido por meio da ressignificação dos acontecimentos? Em busca dessa resposta, desenvolve-se neste texto uma análise de um acontecimento midiatizado, considerando a reportagem da Vogue como um acontecimento criado pela própria publicação, observando-se os rastros da circulação discursiva (Verón, 2004) a partir das marcas de sentido presentes tanto na reportagem, quanto nas postagens dela derivada. Mobilizam-se ainda os conceitos de midiatização (Gomes, 2022), conflitos (Cottle, 2006) e de narrativas da Ucrânia (Horbyk & Orlova, 2023).
PALAVRAS-CHAVE: midiatização, narrativas, jornalismo, circulação, atorização.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo problematizar las narrativas periodísticas y mediatizadas producidas en torno a un acontecimiento mediático-periodístico construido por la revista Vogue en 2022, a partir de un reportaje con el presidente de Ucrania y su esposa, Olena Zelenska. La publicación construye un enfoque centrado en un “retrato de coraje”, materializado en las fotografías de Annie Leibovitz, con la pareja ucraniana posando entre los escombros de la guerra. Este acontecimiento se desplaza hacia la esfera de la actorización social, que no solo cuestiona el hacer periodístico, sino que, a partir de la didactización de sus lógicas y habilidades narrativas colectivas (Albuquerque, 2000; Soster, 2023) empieza a gestionar el flujo de circulación (Fausto Neto, 2013; Rosa, 2020) en las plataformas digitales. A partir de la observación de esta procesualidad surge la pregunta que orienta esteartículo: ¿De qué manera el periodismo de la revista Vogue se ve tensionado por narrativas de actores sociales? ¿Y cómo la actorización afecta las disputas de sentido mediante la resignificación de los acontecimientos? En busca de esta respuesta, se desarrolla en este texto un análisis de un acontecimiento mediatizado, considerando el reportaje de Vogue como un evento creado por la propia publicación, observando las huellas de la circulación discursiva (Verón, 2004) a partir de las marcas de sentido presentes tanto en el reportaje como en las publicaciones derivadas. También se movilizan los conceptos de mediatización (Gomes, 2022), conflictos (Cottle, 2006) y de narrativas sobre Ucrania (Horbyk & Orlova, 2023).
PALABRAS CLAVE: mediatizacion, narrativas, periodismo, circulación, actorización.
ABSTRACT
This article aims to problematize the journalistic and mediatized narratives produced around a media-journalistic event orchestrated by Vogue magazine in 2022, through a report featuring the President of Ukraine and his wife, Olena Zelenska. The publication builds an approach centered on a “portrait of courage”, materialized through photographs by Annie Leibovitz, with the Ukrainian couple posing amid the ruins of war. This event shifts into the sphere of social actorization, which not only questions the practice of journalism but, through the didacticization of its collective narrative logics and skills (Albuquerque, 2000; Soster, 2023), begins to influence the flow of circulation (Fausto Neto, 2013; Rosa, 2020) across digital platforms. From the observation of this processuality, the guiding question of this study emerges: In what ways is Vogue magazine’s journalism challenged by narratives from social actors? And how does actorization affect the disputes over meaning through the re-signification of events? In pursuit of these answers, this text develops an analysis of a mediatized event, considering the Vogue report as an event created by the publication itself, and examining the traces of discursive circulation (Verón, 2004) through the markers of meaning present both in the report and in derivative posts. The analysis also draws on the concepts of mediatization (Gomes, 2022), conflicts (Cottle, 2006), and narratives about Ukraine (Horbyk & Orlova, 2023).
KEYWORDS: mediatization, narratives, journalism, circulation, actorization.
1.
PONTOS DE PARTIDA
Cada vez mais, a complexidade da prática profissional do jornalismo é atravessada pelas práticas sociais transformadas pelo processo de midiatização (Gomes, 2022; Bölin, 2017). Isso significa dizer que o jornalismo elabora suas táticas e lógicas para atribuir sentido à vida, mas também está em tensionamento, pois a circulação, como lócus da produção de sentidos (Rosa, 2020), faz emergir relações e atravessamentos entre gramáticas de produção e de reconhecimento (Verón, 2013). Tais atravessamentos ficam evidentes nas narrativas midiatizadas da Guerra da Ucrânia.
De um lado, uma guerra marcada por uma narrativa emocional, chamada de storytelling nas recentes pesquisas europeias (Horbyk & Orlova, 2023), com ênfase em um fazer-sentir discursivo-midiático que constrói outras e múltiplas guerras, inclusive com tom propagandístico. De outro, o jornalismo tenta elaborar narrativas sobre o conflito midiatizado (Eskjær, Hjavard & Mortensen, 2015; Cottle, 2006), não somente na apresentação dos efeitos de uma guerra vista à distância, mas trazendo angulações que visam a um aprofundamento reflexivo e diferentes abordagens, visto que o conflito se prolonga no tempo. A questão, entretanto, está nas lógicas do jornalismo que ainda resistem a uma abertura aos processos interacionais, tentando determinar os sentidos a partir de enquadramentos reforçados pelo seu lugar de autoridade discursiva, reiterando antigos elementos do imaginário, como os enquadramentos de herói e vilão.
Neste artigo, o foco está em discutir as narrativas jornalísticas e midiatizadas produzidas em torno de um acontecimento midiático-jornalístico tecido pela revista Vogue, em 2022, a partir de uma reportagem com Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, e sua esposa, Olena Zelenska (Donadio, 2022). A publicação constrói uma abordagem em torno de um retrato de coragemii, materializado pelas fotografias de Annie Leibovitz, com o casal ucraniano posando em meio aos escombros da guerra.
Tal acontecimento desloca-se para a esfera da atorização social, que não somente questiona o fazer jornalístico a partir das plataformas de redes sociais como, por meio da didatização de suas lógicas e habilidades coletivas narrativas (Albuquerque, 2000), permite a circulação de narrativas falsas que seguem a mesma tessitura jornalística. Isto é, textos que emulam a notícia ou que desenvolvem criações –em sua maioria visuais– para tensionar o lugar de fala do jornalismo. O humor é bastante utilizado como estratégia, a exemplo das postagens em mídias sociais que comparam as posturas do presidente ucraniano às de Hitler.
Na observação dessa processualidade, emerge a pergunta que norteia este trabalho: de que maneira o jornalismo da revista Vogue se vê tensionado por narrativas de atores sociais? E como a atorização afeta as disputas de sentido por meio da ressignificação dos acontecimentos?
Em busca dessa resposta, desenvolve-se neste texto uma análise de um acontecimento midiatizado, considerando a reportagem da Vogue como um acontecimento criado pela própria publicação, observando-se os rastros da circulação discursiva (Verón, 2004) a partir das marcas de sentido presentes tanto na reportagem quanto nas postagens dela derivadas.
Trata-se, portanto, de investigar a complexificação das narrativas midiatizadas que não apenas se contatam, mas se atravessam nas zonas intermediárias de circulação (Soster, 2023), colocando em xeque tanto a questão da referência e do “instante pregnante”, tão caro ao jornalismo de guerra, quanto os modos de sentir e imaginar uma guerra, uma vez que a própria guerra se desenvolve no território midiático.
2.
UM CONFLITO MIDIATIZADO
2.1.
A guerra da ucrânia no
fluxo das elaborações
A relação entre os conflitos –como guerras e atentados terroristas– e o jornalismo é tão antiga quanto profunda. Ou seja, falar de conflitos implica falar do jornalismo, já que estes se convertem em acontecimentos quando ganham contornos sociais, a partir do momento em que ultrapassam os campos de batalha e chegam aos nossos lares, nos mais diferentes lugares do mundo. Tomem-se como exemplo os registros que remontam à primeira cobertura de guerra, realizada em 1854 pelo fotojornalista Roger Fenton. Não por acaso, essas primeiras narrativas da guerra de dentro do front ocorreram na Crimeia, mesmo cenário onde, muitos anos depois, em 2014, Rússia e Ucrânia disputaram a posse de territórios.
Em 2022, um novo capítulo se iniciou com a então intitulada “operação militar especial” a qual, em 24 de fevereiro, resultou na ocupação da Ucrânia por tropas militares russas. Tal ocupação continua em curso, numa disputa por território, poder e, claro, sentidos. Simon Cottle (2006, p. 4) define: “Conflicts can be defined straightforwardly. Essentially. they are struggles between opposing interests and outlooks”iii.
No caso da guerra em curso, de um lado, o presidente russo, Vladimir Putin, alega a necessidade de livrar a Ucrânia de um governo neonazista e de combater a perseguição a grupos separatistas. Ao mesmo tempo, classifica a possível adesão da Ucrânia à Otan – aliança militar de 30 países que se expandiu pelo Leste Europeu– como um cerco às fronteiras russas. De outro lado, o presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, considera que a invasão da Ucrânia representa uma luta entre duas visões de mundo, que envolvem desde questões políticas e econômicas até a defesa da soberania. Para Zelensky, os russos buscam restabelecer o controle e a influência da antiga União Soviética, o que é por ele considerado como um desrespeito.
Essas narrativas díspares vêm sendo inscritas em muitos espaços midiáticos, não apenas jornalísticos. Estão em vídeos postados em diferentes plataformas, em reportagens, discursos e pronunciamentos. Isso significa que a guerra atual, embora tenha desdobramentos efetivos no território físico das cidades, também se desloca para a esfera da produção discursiva de sentidos e valores sociais na dimensão midiática. Isso, claro, não é novidade, visto que conflitos anteriores também tinham os “modos de dizer” como elementos centrais. A questão aqui é que, para além do conteúdo das narrativas em si, há uma lógica de midiatização que antecede o próprio conflito. Ou seja, a guerra da Ucrânia é uma guerra comunicacional, na medida em que se refere a um conflito midiatizado.
Quando falamos em um conflito midiatizado, não nos referimos a um conflito que apenas “vai para a mídia”, no sentido de repercussão e visibilidade. Em nossa visão, trata-se de um acontecimento tecido e organizado em torno das lógicas de midiatização, o que envolve tanto as macroestratégias de ação quanto as táticas de confronto e combate. José Luiz Braga (2014) argumenta sobre a importância da diferenciação entre lógicas de mídia e de midiatização, já que é comum associar a cultura midiática –centrada na influência e na dependência dos meios– como base do conceito de midiatização. No entanto, pelo entendimento do autor (e também conforme nossa prática de pesquisa), a midiatização transcende, e muito, essa visão centrada nos veículos de comunicação e em sua dimensão tecnológica.
Obviamente, há um entranhamento da cultura midiática no fazer social, mas este não é limitado. Isso significa pensar que não se trata apenas de pôr algo na mídia ou de entender a guerra como um produto midiático para o espetáculo, embora esses sejam elementos presentes nos conflitos midiatizados que investigamos. Nesse sentido, Braga (2015) é esclarecedor:
É inegável a presença de lógicas midiáticas no processo da midiatização. Mas nos perguntamos se a midiatização corresponde tão simplesmente a essa penetração de lógicas da mídia em uma cultura que sofre mudanças apenas de forma inercial. Se assim fosse, as variações observadas nos diversos campos sociais seriam uma espécie de média matemática entre lógicas anteriores de cada campo e as lógicas recebidas da mídia. Não nego, absolutamente, o poder das mídias, nem sua grande incidência em múltiplos processos interacionais, na sociedade em midiatização. Também não afirmo que outras lógicas intervenientes serão melhores ou mais pertinentes que estas. Entretanto, é preciso reconhecer a presença de outros processos, que se distinguem daqueles, e que podem reforçá-los, redirecioná-los ou produzir, experimentalmente, outras lógicas –que se tornarão, então, lógicas de mídia, invertendo o sentido da incidência. (p.19)
Para o autor, pensar em lógicas de midiatização implica refletir sobre lógicas de processos midiáticos, ou seja, sobre processos tentativos e de experimentação social. Tais processos levam em conta, obviamente, o fazer da mídia e sua dimensão tecnológica, mas também englobam apropriações, a ampliação dos espaços interacionais (muito pelas redes sociais), os circuitos e as contextualizações/descontextualizações deles derivadas. Assim, Braga (2015) enfatiza que há uma pluralidade de experimentações interacionais originadas de setores e campos diferenciados: “Mesmo na circunstância possível, em que essas experimentações lancem mão de lógicas mais estabelecidas de mídia (ou se submetam a elas), é inerente à experimentação social uma busca de ajuste às especificidades e objetivos” (p. 24). No caso da guerra da Ucrânia, essas experimentações ocorrem tanto por parte das forças militares e políticas quanto da própria sociedade, que também ascende ao espaço discursivo midiático, produzindo visões da guerra –perceptíveis, por exemplo, em vídeos no TikTok e em narrativas no Instagram–. Nesse sentido, o que configura uma guerra midiatizada não é o fato de ela estar na mídia, mas o modo como é elaborada e tecida a partir de um conjunto de experimentações sociais, com objetivos específicos distintos, que transformam, por meio de apropriações e coproduções, inclusive as lógicas de mídia mais estabelecidas.
Significa dizer que, ao longo do tempo, desde 1854 até os dias atuais, os modos de conceber, executar e lidar com conflitos foram se transformando em função da complexidade da própria sociedade em midiatização. Essa complexidade engloba as dimensões de tempo e espaço, visto que se trata de uma processualidade de longo prazo, em que dispositivos tecnológicos se convertem em lócus para produção, recepção e, especialmente, circulação de sentidos. Göran Bolin (2017) entende a midiatização como: “The mediatisation perspective, with is insistence o analysing the role of the media in culture and society as a long-term process”iv.
O olhar do autor se aproxima da perspectiva latina adotada neste texto, que encontra em Verón (2014) o respaldo para considerar a midiatização como um processo semioantropológico de longa duração, que acompanha o desenvolvimento humano –embora venha se intensificando nas últimas décadas com as mídias digitais e os saltos que estas provocam–. Nesse contexto, para Verón (2014): “A vantagem conceitual da perspectiva de longo prazo é nos relembrar que o que está acontecendo nas sociedades da modernidade tardia começou, de fato, há muito tempo” (p. 16).
Ou seja, não se pode considerar as atuais mudanças sociais como fruto apenas da amplificação tecnológica, deslocadas dos processos que estão na base dessas mesmas tecnologias –o que implica invenções, usos, apropriações, negociações, diálogos e rupturas ao longo do tempo.
As guerras são exemplos disso. Conflitos anteriores didatizaram seus fazeres, conforme foram se complexificando: Guerra da Crimeia, Primeira Guerra Mundial, Guerra Civil Espanhola, Guerra do Golfo, Guerra da Bósnia, Guerra da Namíbia, Guerra do Iraque, somados aos inúmeros atentados terroristas desde 11 de setembro de 2001. Ao longo desses acontecimentos, as tecnologias mudaram profundamente, convertendo-se também em armas de guerra. Mas não só: os conflitos midiatizados passaram a ser deflagrados de formas muito distintas, nas quais o conhecimento social sobre um conflito passa a ser base para a geração do próximo.
Na Guerra do Golfo, experienciamos uma guerra transmitida pela televisão, mas com visibilidade extremamente reduzida –eram feixes de luz à distância figurando ataques–. Nos atentados de 11 de setembro, a ação foi pensada para as câmeras, projetada em termos de horário e circuitos. No atentado da Nova Zelândia, em 2019, o conflito foi transmitido em tempo real pelo Facebook, incorporando referências tanto da televisão quanto dos jogos.
Já na Guerra da Ucrânia, a complexidade é ainda mais evidente: há diversas narrativas em circulação, desde vídeos emocionais nas redes sociais, propaganda de guerra, produções de agências de notícia, até gramáticas de jogos e tecnologias de automação como drones.
Nesse sentido, argumentamos que, na perspectiva de longo prazo da midiatização, o desenvolvimento tecnológico e comunicacional e seus afetamentos não são apenas da ordem dos meios, mas especialmente das operações de sentido. O jornalismo aprendeu, ao longo do tempo, sobre as coberturas de guerra; os governos aprenderam não só sobre estratégias militares, mas sobre o lugar estratégico da comunicação; os atores sociais aprenderam, pela própria didatização dos meios, que são parte atuante dos conflitos –não apenas como espectadores ou diretamente implicados, mas como sujeitos capazes de afetar e agir sobre os conflitos, especialmente quando passam a produzir narrativas tensionadoras.
Assim, conforme Gomes (2022), não estamos mais diante do fenômeno do simples uso dos dispositivos tecnológicos para a transmissão de mensagens, nem de sua função como meros mediadores da relação dos indivíduos com a realidade:
Ao contrário, o que o desenvolvimento das mídias digitais está criando é uma nova ambiência que, por sua vez, dá lugar a um novo modo de ser no mundo. A consequência disso é que, em lugar de estarmos assistindo a um fim da midiatização, estamos apenas no limiar de seu pleno desenvolvimento. (p. 170)
O autor, ao tratar a sociedade em estado de midiatização –ou imersa nessa ambiência– enfatiza a necessidade de outras chaves de leitura, tanto do sujeito quanto do mundo. Isso porque, para além da face visível da tecnologia e de suas lógicas, as práticas sociais já estão sendo conduzidas de outra forma: nascem em outro caldo cultural, no qual as mídias digitais e as formas de sociabilidade online não são um complemento, mas parte integrante da tessitura da vida cotidiana.
Como bem aponta Gomes (2022), a midiatização é um princípio de inteligibilidade social, sendo essencial pensarmos o lugar que ela assume na configuração dessa nova ambiência, atravessada por velhas questões como as disputas de poder, de território e de narrativas.
3.
O LUGAR DAS NARRATIVAS
3.1.
Storytelling, jornalismo e
atorização
A partir da concepção, anteriormente mencionada, de que a midiatização é uma forma de inteligibilidade social, passamos a olhar para as narrativas midiatizadas. Estas estão tanto no âmbito do jornalismo, quanto nas elaborações discursivas dos atores sociais que assumem um lugar de comentadores ou de coletivos. Ou seja, as narrativas se estabelecem a partir da articulação entre produção e reconhecimento através de múltiplos afetamentos, o que é característica da circulação. De um lado, o jornalismo permanece em sua tentativa de atribuir sentidos à vida, agenciando fluxos e interpretações. De outro, os atores sociais que desenvolvem suas próprias formas experimentais de interação, tensionando os sentidos ofertados pelo jornalismo, produzindo novos sentidos e circuitos. Esses atravessamentos ficam evidentes nas muitas narrativas da Guerra da Ucrânia. Há uma miríade de narrativas: as emocionais; as focadas em dados que tentam reconstruir o acontecimento historicamente, as propagandísticas. Há, do mesmo modo, uma diversidade de agentes produtores destas narrativas. Aqui nos interessa olhar, especificamente, para o jornalismo e suas gramáticas de produção e para o fazer da atorização social, a partir das gramáticas de reconhecimento.
Por atorização social compreendemos as operações de produção de sentidos, comunicativas portanto, desenvolvidas por atores sociais dispersos (não vinculados à instituições midiáticas) ancoradas em lógicas de mídia didatizadas anteriormente, mas que são apropriadas a partir de experimentações sociais em dispositivos midiáticos (Rosa, 2024). Tais experimentações, calcadas na experiência dos sujeitos, assumem protagonismo por aquilo que fazem coletivamente, inclusive já considerando a semiose infinita da circulação, os fluxos e as reinscrições como parte da estratégia de contato. Nota-se, por exemplo, o caráter tensionador destas formulações, em especial do próprio espaço midiático hegemônico.
Deste modo, antes de adentrar na narrativa da guerra, cabe uma explicação do que estamos entendendo por narrativas neste texto. Para isso recorremos a Afonso Albuquerque (2000) para quem o papel da narrativa no jornalismo não se limita “à explicação do significado dos eventos noticiados. As formas narrativas utilizadas nas notícias constituem também um recurso importante do qual os jornalistas se valem para legitimar a sua própria autoridade descritiva e interpretativa acerca da realidade” (p. 73). Isto é, ao jornalista cabe não somente relatar os fatos e avaliar seu significado, mas demarcar, efetivamente, sua pertinência diante da realidade. Conforme Albuquerque (2000),
os recursos narrativos empregados pelos jornalistas atuam não apenas no sentido de legitimar como verdade as notícias que eles veiculam, mas também de reforçar a autoridade retórica dos jornalistas, permitindo que eles se apresentem como intérpretes legítimos dos acontecimentos do “mundo real”. Através das suas narrativas, os jornalistas constituem uma “comunidade interpretativa” e negociam suas fronteiras (Zelizer, 1992). Mais do que simplesmente contarem o que aconteceu, as narrativas jornalísticas falam sobre as prerrogativas e os deveres dos jornalistas na descrição e interpretação dos acontecimentos, legitimam determinados profissionais ou grupos jornalísticos como mais autorizados do que outros para relatar determinados acontecimentos e sustentam a autoridade interpretativa da comunidade jornalística como um todo frente a comunidades interpretativas concorrentes (...) Assim, por exemplo, a cobertura da morte de Lady Diana em um acidente automobilístico envolveu não somente uma discussão sobre as causas do acidente, os responsáveis por ele e suas conseqüências para a monarquia britânica, mas também um animado debate sobre as diferenças existentes no interior do meio jornalístico (jornais “sérios” versus tablóides e paparazzi) e sobre a necessidade ou a impertinência da existência de limites legais à atuação da imprensa. (p. 74)
A citação acima nos permite aproximar a abordagem de narrativa do que experienciamos no momento vigente sobre a Guerra na Ucrânia. Além das discussões em torno das causas do conflito, dos interesses econômicos e geopolíticos em jogo, há também um debate sobre a forma de visibilidade e acesso às informações da guerra, incluindo aí um tensionamento sobre as construções jornalísticas. Tome-se como exemplo as limitações geográficas. No caso do Brasil, a guerra é sempre tecida de um modo distante, quase exótico, muitas vezes pela impossibilidade de acesso ao local do conflito. As agências de notícia tentam dar concretude ao acontecimento, mas passados os meses iniciais, as coberturas foram perdendo significativamente a força, sendo o conflito vinculado a ataques, datas-marco ou repercussões de narrativas de outros agentes, como Putin e Zelensky, em eventos da Organização das Nações Unidas (ONU) e da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) que possibilitam reverberações na esfera política e social mundial. No entanto, na Europa a produção de notícias sobre a guerra é bastante intensa, exatamente porque os efeitos são sentidos em uma escala diferente, a proximidade dá conta de outros conflitos vinculados como a questão dos imigrantes, o crescimento da desigualdade social e as ameaças de crises energéticas e nucleares. Entretanto, as narrativas jornalísticas são questionadas pelos atores sociais, que também são partícipes dos acontecimentos. É comum identificarmos comentários, postagens em redes sociais e até perfis questionando o modo de “cobertura” da guerra pelo jornalismo hegemônico. Há os que acusem uma posição pró-Ucrânia, há os que duvidem das fontes ouvidas ou da ficcionalização das histórias. Mallmann (2023) por exemplo se debruçou a investigar essa produção tensionadora do jornalismo em perfis de atores sociais alçados ao caráter de especialistas em conflitos armados, exatamente por se dedicarem integralmente às lógicas das ações militares.
Aqui neste artigo, nosso foco não recai nestas produções, mas no tensionamento das narrativas jornalísticas em si. Horbyk e Orlova (2023) localizam a problemática das narrativas sobre a Ucrânia como um processo de transformação, visto que o país sempre foi visto midiaticamente como “um país de lugar nenhum”, uma nação fendida. Até os anos 2000, segundo os autores, a Ucrânia viveu sob “uma imagem sombria pós-soviética, infestada de corruptos e criminosos” (p. 229). Em função disso, a comunicação era sempre mais reativa e lenta. No entanto, a partir das eleições de 2019, ocorreu um ponto virada. Com Zelensky eleito, um comediante com domínio das lógicas de mídia. Para Horbyk e Orlova (2023):
Zelensky’s team consisted mainly of his screenwriter colleagues who were aware of the role that storytelling plays in the present-day media ecology. They embraced virality, shareability, and other aspects of social media logic, but above all, they put their stakes on trans media storytelling (Horbyk, 2020). They skillfully weaved together an immersive narrative that spanned several media forms, including a fictional TV series where Zelensky played the role of a nonsystemic outsider who unexpect edly becomes a successful president. The superiority of their storytelling was noticeable at every step of the campaign, resulting in Zelensky’s confident victory in presidential and later parliamentary elections in almost all Ukrainian regions (erasing the post-2004 electoral divide, which finally knocked out the support that the “cleft country” narrative rested upon) (Chaisty & Whitefield, 2022). When the Russo-Ukrainian War went from its hybrid and relatively low-intensity phase (2014-2022) to an allout war (2022-present), the same model of transmedia storytelling was employed in wartime public diplomacy. (p. 229)v
Assim, para Horbyk e Orlova (2023), o governo ucraniano a partir de uma nova postura narrativa, imersa no domínio de estratégias comunicativas, passou a ser percebido e tratado de modo distinto pela mídia ocidental. Desenvolveu-se, deste modo, um arco narrativo que forneceu à Ucrânia legitimidade, permitindo sua presença em múltiplas plataformas, desde memes à grandes entrevistas em canais americanos e globalizados. O próprio Zelensky passou a ser visto frequentemente em vídeos com seu uniforme verde-militar, distribuídos de modo tático e incluídos no jornalismo como um ciberacontecimento (Henn, 2013). Neste sentido, os autores consideram que para além dos padrões jornalísticos (imparcialidade, objetividade, oferto dos dois lados da questão) emerge cada vez mais um “storytelling jornalístico na formação da imagem do país internacionalmente” (Horbyt & Orlova, 2023, p. 230). Isto é, as narrativas tornam-se centrais quando a Ucrânia passa a assumir a lógica de midiatização como base, isto é, pautando, produzindo sentidos para inscrever e circulação, agenciando a própria mídia valendo-se das regras e padrões do jornalismo e do entretenimento, construindo discursos que chegam à mídia hegemônica, mas que são autonomizados desta. Tais narrativas (em torno de memes, de personagens fantasmas) acabam por se aproximar da própria cultura das mídias sociais, o que também incide sobre as interações com e através dos atores sociais.
Neste aspecto, Soster (2023) considera a midiatização como uma chave hermenêutica para a compreensão do mundo, considerando que “os fluxos informativos circulam pela “tessitura da discursividade midiática, de forma autorizada ou não, e, nesse caminho, se interpõem e atravessam os dispositivos, reconfigurando-os. O resultado mais perceptível desse movimento é a criação do que chamamos de Zonas Intermediárias de Circulação (ZICs)” (Soster, 2023, p. 11). Estas zonas de contato se constituem dentro das redações a partir daquilo que emerge das redes sociais e do fazer da atorização, afetando diretamente o trabalho jornalístico e as elaborações narrativas. Isto é, o autor problematiza o lugar dos narradores, propondo o conceito de quarto narrador que se configura como um “conjunto de vozes narrativas emitidas pelos dispositivos e que são reconhecíveis entre si pelo viés da tematização, e que, sem seu conjunto, formam um sistema comunicacional de natureza multifacetada e plurivocal, que chamamos de jornalístico” (p. 10).
Assim, a questão que se coloca para nós é sobre a complexidade da comunidade interpretativa a partir da pluralidade de vozes e de atores agenciando a circulação midiática. O jornalismo, muitas vezes, resiste em suas lógicas à abertura aos processos interacionais, tentando determinar os sentidos a partir de enquadramentos reforçados pelo seu lugar de autoridade discursiva, reiterando antigos elementos do imaginário como os enquadramentos de herói e o vilão. Tais enquadramentos são contestados, recriados, problematizados, desencadeando mais e mais narrativas e uma proliferação de sentidos que passam a impor novos desafios ao jornalismo. Como lidar com aquilo que o transborda, isto é a circulação? Como lidar com as narrativas da diplomacia midiática do governo ucraniano focado em contar histórias? O caso Vogue exemplifica essa ruptura. Assim, no próximo tópico desenvolvemos uma análise dos rastros da circulação discursiva. Para isso é preciso adentrar na reportagem, objeto de referência, como um estopim de um circuito interacional para, em seguida, verificar as interações em redes sociais sobre esse acontecimento. Essas materialidades são analisadas pelo viés da circulação discursiva (Verón, 2004) buscando identificar marcas discursivas (imagens e textos), bem como operações de sentidos desenvolvidas pelos diferentes atores.
4. O
ACONTECIMENTO ENTREVISTA NA VOGUE
EM
CIRCULAÇÃO
Aqui, nos voltamos para o objeto de referência deste artigo, um acontecimento midiático-jornalístico tecido pela revista Vogue, em julho de 2022, a partir de uma entrevista especial com Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, e sua esposa, Olena Zelenska. Com texto de Rachel Donadio (2022) e fotografias de Annie Leibovitz, a publicação constrói uma abordagem em torno do papel da mulher na guerra, em especial da primeira-dama. Com o título “Um Retrato de Coragem: a primeira-dama da Ucrânia, Olena Zelenska”, a entrevista vai desenhando uma narrativa de superação da dor e de resistência. Não são poucas as vezes ao longo do texto que a ideia de vitória, mas também a definição dos contornos de uma jovem primeira-dama que se torna o rosto de sua nação. Diz o texto: “um rosto de mulher, um rosto de mãe, um rosto humano empático” (Donadio, 2022). Ou seja, a jornalista vai tentando conduzir seus leitores a formar uma imagem de Olena, como aquela que busca apoio internacional enquanto seu marido lidera uma “nação de civis que se transformaram em combatentes de um dia para o outro” (Donadio, 2022).
Estas marcas da produção do texto jornalístico vão nos revelando enquadramentos e propondo um caminho interpretativo. De alguma forma a entrevista vai propondo um retrato de coragem de uma mulher que tenta humanizar a dor da guerra, dando espaço para vozes dos cidadãos. O texto em tom de relato traz:
Nas nossas duas conversas em Kiev, Zelenska foi franca, digna, elegante, uma subtil promotora de designers ucranianos. Um dia, vestiu uma blusa de seda ecru com um laço de veludo preto amarrado à volta do pescoço e uma saia preta, o seu cabelo loiro amarrado casualmente. No dia seguinte, escolheu calças de ganga largas, ténis brancos volumosos com detalhes amarelos e azuis, um aceno para a bandeira ucraniana e um projeto de angariação de fundos da marca The Coat, o seu cabelo solto nos ombros, e uma camisa cor de ferrugem com botões. Não pude deixar de pensar que a camisa tinha o mesmo tom enferrujado que os tanques russos queimados que vi. (Donadio, 2022)
Ou seja, a jornalista recorre aos padrões jornalísticos do dispositivo Revista Vogue, considerando seu público, para abordar as roupas e o estilo da primeira-dama. Mas na frase seguinte abre-se espaço para a fala enfática da primeira-dama: “Compreendemos que se trata de uma guerra de extermínio” (Donadio, 2022). Assim, ao lado da descrição dos tecidos, comparece uma frase de efeito, mobilizadora de afetos. A narrativa emocional remonta os dias da eclosão da guerra, a reação de Olena mãe e esposa, mas também reforça o tom com os dados numéricos de mortos e dos que foram obrigados a deixar suas casas e famílias para fugir. Em outro trecho, a jornalista relata o encontro com Zelensky:
Zelensky era discreto, com uma barba de vários dias, e parecia cansado. Apertámos as mãos. Disse-lhe que estava lá para falar de outra frente na guerra: a frente doméstica. “O lar é também a linha da frente”, disse no seu tom de barítono grave. (Donadio, 2022)
Nota-se que neste trecho da reportagem há uma tessitura da cena, a conversa, os gestos e a resposta valorizando o lar, E a partir disso, o presidente de um país em crise passa a conversar sobre o lugar da esposa, dos filhos, da família num conflito tão sangrento. Há aqui uma imagem tecida, Olena e Zelensky como uma família modelo, retratos de coragem, mas também um casal comum, com desafios da vida doméstica. A legenda de uma foto diz: “Claro que ela é meu amor, mas também minha melhor amiga” (Donadio, 2022). Apesar dos entremeios clichês, típicos das revistas de celebridades, a reportagem encerra com uma alusão à máquina de guerra e à máquina da comunicação, fechando com a frase de Olena sobre o sonho do fim da guerra e, de enfim, voltar a jantar em família. A reportagem, considerando as gramáticas da Vogue, está adequada ao dispositivo, mas no contato com as zonas intermediárias de circulação, evidencia tanto o storytelling enquanto lógica produtiva, quanto a narrativa como uma tessitura do acontecimento e da pertinência da realidade.
Entretanto, a questão da narrativa passa a ser questionada pelos atores sociais a partir, principalmente, das imagens. As fotografias foram produzidas pela famosa fotógrafa Annie Leibovitz, conhecida por sua atuação em grandes revistas, principalmente voltadas para celebridades. É autora de retratos icônicos de John Lennon e Yoko Ono, Demi Moore nua e foi responsável pela primeira fotografia de capa da Vogue com uma mulher negra. O questionamento no caso das imagens da reportagem e da capa da Vogue não é pela técnica ou sensibilidade da fotógrafa conhecida por captar a alma destas celebridades em suas obras. A questão está na profusão de sentidos que emergem do fato de que o casal Zelensky estaria se vendendo à lógica americana, tornando a si mesmo e a guerra objetos de consumo e frivolidade.
As imagens foram feitas em Kiev e mostram Olena sozinha na capa (Imagem 1), mas também o casal (Imagem 2) e uma espécie de caricatura de um editorial de moda (Imagem 3) em meio ao front, inclusive com vídeo de making off.
Imagem
1.
Capa da Revista Vogue
Fonte: Vogue (julho de 2022) - https://www.vogue.com/article/portrait-of-bravery-ukraines-first-lady-olena-zelenska
Imagem
2. O
casal posando para as lentes da fotógrafa Annie Leibovitz
Fonte: Vogue (julho de 2022) - https://www.vogue.com/article/portrait-of-bravery-ukraines-first-lady-olena-zelenska
Imagem
3.
Imagem estilo editorial de moda com mulheres-soldado no front
Fonte:
Vogue
(julho de 2022) -
https://www.vogue.com/article/portrait-of-bravery-ukraines-first-lady-olena-zelenska
Os atores sociais, diante destas elaborações, colocam em xeque as operações de produção do editorial de moda e das revistas de celebridades perante as coberturas de guerra. O acontecimento entrevista desloca-se para a esfera da atorização social que não somente questiona o fazer jornalístico como, a partir da didatização de suas lógicas e habilidades coletivas narrativas (Albuquerque, 2000), coloca outras narrativas em fluxo. Há questionamentos pelo excesso de frivolidade e pela produção fotográfica em meio aos escombros (Imagem 4), mas também sobre quão séria é a guerra (Imagem 5). Além disso, diversas postagens passam a questionar o quanto a reportagem desrespeita o povo ucraniano e seu horror. Zelensky é chamado de fraude, narcisista e um “novo Hitler”.
Imagem
4. Postagem
de ator social questionando as elites ocidentais e as práticas de
Vogue
Fonte: Postagem em rede social X
Imagem
5.
A
guerra posta em xeque, bem como as narrativas
Fonte: Postagem em rede social X
Ou seja, a atorização social complexifica a narrativa, desdobrando a reportagem em muitas outras produções. Aqui nos voltamos somente aos comentários e postagens nas redes, mas muitos memes e elaborações derivadas surgiram após a polêmica, inclusive complexos circuitos jornalísticos comentando a polêmica, inclusive no Brasil. Isto posto, o que as operações narrativas do jornalismo, a partir de seus padrões e do storytelling, nos revelam da complexidade dos conflitos mediante a presença e interpenetração da atorização social?
5.
NOTAS DE FIM
5.1.
Desafios da narrativa
jornalística midiatizada de guerra frente à atorização social
Pensar a narrativa jornalística e os conflitos sociais na ambiência da midiatização é uma tarefa complexa. Isso se deve, por um lado, à própria complexidade da sociedade contemporânea, que vive sob um “novo modo de ser no mundo” (Gomes, 2022), em que lógicas de mídia e de midiatização se articulam em torno de um processo não exatamente novo, mas intensificado em seus desdobramentos. Embora a midiatização seja um processo de longa duração, ela pode ser compreendida como intensificada, como aponta Ana Isabel Freire (2023), ao estender suas forças sobre todo o tecido social, especialmente na emergência do lugar da atorização social.
Neste artigo, voltamo-nos para as narrativas jornalísticas e midiatizadas produzidas em torno de um acontecimento construído pelo jornalismo: a reportagem da revista Vogue com entrevista e foto de capa do casal Volodymyr Zelensky e Olena Zelenska. A publicação, intitulada “retrato de coragem”, busca seguir as gramáticas e os padrões do jornalismo de revistas de moda; contudo, ao introduzir uma pauta geopolítica e de guerra, essas operações se complexificam, resultando no que Fausto Neto (2013) denomina “feedbacks complexos”. Ou seja, a reportagem transborda os limites da revista e se desdobra em múltiplos circuitos típicos da circulação discursiva, tornando impossível conter ou delimitar os sentidos. Ainda que a repórter tente inserir sua visão pessoal e construir uma narrativa-relato, acaba por produzir uma história cujo enredo planifica e superficializa o debate sobre a guerra.
Nesse contexto, a noção de diplomacia midiática torna-se relevante. A reportagem da Vogue pode ser compreendida como uma estratégia de diplomacia midiática (Gilboa, 2001), na medida em que a revista assume o papel de interlocutora e mediadora do conflito na Ucrânia a partir da perspectiva adotada por Zelensky. Considerando sua linha editorial, a Vogue desenvolve o que se denomina “diplomacia de mediadores”. No entanto, essa narrativa mediadora sofre as injunções da circulação de sentidos, pois as críticas e os tensionamentos passam a ser direcionados não apenas à guerra, mas à própria produção jornalística.
Os atores sociais, valendo-se da didatização das lógicas de mídia, passam a questionar essas operações, desenvolvendo novas operações de sentido. Tais questionamentos emergem nas mídias sociais, em postagens no Twitter (atual X) ou em comentários sobre a própria reportagem. Curiosamente, o espaço de comentários na página da Vogue é restrito, contendo apenas uma manifestação elogiosa à abordagem feminista. Fora do dispositivo jornalístico, a semiose infinita segue seu curso com memes, analogias históricas e críticas à legitimidade da própria guerra. Em outras palavras, a atorização social afeta as disputas de sentido sobre a guerra ao coproduzir novos discursos e perspectivas, tensionando a narrativa com diferentes ângulos de abordagem.
Em vez de uma aceitação passiva da narrativa proposta pela Vogue, os atores sociais a utilizam como estopim para um conjunto de críticas, inclusive convocando experiências de outros conflitos. O acontecimento-entrevista, inicialmente circunscrito à lógica editorial da revista de moda, passa a ser ressignificado. O relato detalhado e a narração humanizada perdem força, sendo vistos como tentativas forçadas de reconhecimento. As poses de Olena Zelenska para as lentes de Annie Leibovitz evidenciam a contradição entre discurso e ação, e é essa contradição que se amplifica nas produções dos atores sociais, para os quais o “retrato de coragem” revela, na verdade, um esvaziamento da própria guerra.
Esse episódio fornece indícios relevantes sobre os conflitos midiatizados, conforme a concepção de Cottle (2006):
For the participants, conflicts are made sense of discursively and culturally – they are often high in meaning and affect – and they are invariably pursued purposefully, strategically and practically. Conflicts can also burn briefly and brightly or smoulder across generations. (p. 5)
Trata-se, portanto, de mais de um conflito. Ao observarmos as imagens posadas de Leibovitz em meio ao cenário bélico, outras guerras, imagens e discursos entram em choque, gerando um embate de narrativas. De um lado, há a tentativa de construir um arco narrativo em torno de um heroi e uma heroína (humanos, mas quase sobre-humanos). De outro, há a questão das referências e expectativas. Desde Roger Fenton até inúmeros fotógrafos de guerra, as narrativas visuais de conflitos buscaram captar o “instante pregnante” de Cartier-Bresson, cuja proximidade do front implicava risco de morte. No caso da Vogue, a proximidade, em vez disso, permite questionar a prática jornalística e, sobretudo, a guerra –cujos contornos são tão inacessíveis quanto inimagináveis à distância, protegidos pelas telas e plataformas.
Diante disso, o jornalismo enfrenta grandes desafios para se reinventar. Um possível caminho seria não negar a atorização social, mas compreendê-la como parte constitutiva do ecossistema midiático –um verdadeiro retrato de coragem que se abre à interação e à reflexão crítica, em vez de simplesmente rejeitá-las.
REFERÊNCIAS
Albuquerque, A. (2000). A narrativa jornalística para além dos faitdivers. Lumina, 3(2), 69-91. https://www.ufjf.br/facom/files/2013/03/R5-Afonso-HP.pdf
Bolin, G. (2017). Media generations: experience, identity and mediatised social change. Routledge.
Braga, J. (2015). Lógicas Da mídia, lógicas da midiatização. Em Fausto Neto, A., Raimondo Anselmino, N. & Gindin, I. (Org.), CIM – Relatos de Investigaciones sobre mediatizaciones (pp. 15-32). UNR Editora.
Braga, J. (2012) Circuitos versus campos sociais. Em Matos, M., Janotti, J. & Jacks, N. Mediação e Midiatização (pp. 31-52). UFBA/COMPÓS.
Chaisty, P. &
Whitefield, S. (2022). How challenger parties can win big with frozen
cleavages: Explaining the landslide victory of the servant of the
people party in the 2019 Ukrainian parliamentary elections. Party
Politics,
28(1),
115-126.
https://doi.org/10.1177/1354068820965413
Cottle, S (2006). Mediatized conflicts. McGraw-Hill Education.
Donadio, R. (2022). Portrait of Bravery: Ukraine’s First Lady, Olena Zelenska. Vogue. https://www.vogue.com/article/portrait-of-bravery-ukraines-first-lady-olena-zelenska
Eskjær, M. F., Hjavard, S. & Mortensen, M. (2015). The Dynamics of Mediatized Conflicts. Peter Lang.
Fausto Neto, A. (2010). A circulação além das bordas. Em Fausto Neto, A. & Valdettaro, S. (Orgs.), Mediatización, Sociedad y Sentido: diálogos entre Brasil y Argentina (pp. 2-17). UNR. https://rephip.unr.edu.ar/server/api/core/bitstreams/3bf90365-da52-4899-9fca-1b4fc2c7f995/content
Fausto Neto, A. (2013). Como as linguagens afetam e são afetadas na circulação? Em Braga, J. L., Ferreira, J., Fausto Neto, A. & Gomes, P. G. (org.), Dez perguntas para a produção de conhecimento em comunicação (pp. 45-66). UNISINOS.
Freire, A. (2023). A tessitura comunicacional dos direitos humanos a partir do caso Marielle: experimentações sociais e agenciamentos de sentidos na circulação. Teses de doutorado, Programa de pós-graduação em ciências da comunicação, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, Brasil. http://www.repositorio.jesuita.org.br/handle/UNISINOS/12573
Gilboa, E. (2001). Diplomacy in the media age: Three models of uses and effects. Diplomacy & Statecraft, 12(2), 1-28. https://doi.org/10.1080/09592290108406201
Gomes, P (2022). Desandar o andado: os subterrâneos dos processos midiáticos. Edições Loyola.
Henn, R. (2013). Ciberacontecimento. Em Vogel, D., Meditisch, E. & Silva, G. (Org.), Jornalismo e acontecimento: tramas conceituais (pp. 21-34). Insular.
Horbyk, R. & Orlova, D. (2023). Transmedia storylling and memetic warfare: Ukraine´s wartime public diplomacy. Place Brand Public, 19, 228-231. https://doi.org/10.1057/s41254-022-00283-1
Rosa, A. P. (2019). Circulação: das múltiplas perspectivas de valor à valorização do visível. Revista Intercom, 42(2), 21-33. https://doi.org/10.1590/1809-5844201921
Rosa, A. P. (2019). Imagens em espiral: da circulação à aderência da sombra. Matrizes, 13(2), 155-177. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v13i2p155-177
Rosa, A. P. (2020). Quando os olhos não piscam, nem param: da imagem operação à ascensão ao fluxo. Em Ferreira, J., Gomes, P. G., Fausto Neto, A., Braga, J. L. & Rosa, A. P. (Orgs.). Redes, sociedade e polis: recortes epistemológicos na midiatização (pp. 201-225). FACOS-UFSM.
Rosa, A. P. (2024). Transbordamentos da narrativa jornalística: das incompletudes à atorização ante um dilúvio de imagens. Red de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas, Universidade Federal do Pará, Brasil.
Soster, D. (2023). Quarto narrador, um conceito em movimento. E-Compós, 26, 1-16. https://doi.org/10.30962/ec.2703
Verón, E. (2004). Fragmentos de um tecido. UNISINOS.
Verón, E. (2013). La semiosis social 2: ideas, momentos, interpretantes. Paidós.
Verón, E. (2014). Teoria da midiatização: uma perspectiva semioantropológica e algumas de suas consequências. Matrizes, 8(1), 13-19. https://doi.org/10.11606/issn.1982-8160.v8i1p13-19
Zelizer, B. (1992). CNN, the Gulf War and Journalistic Practice. Journal of Communication, 42(1), 66-81. https://doi.org/10.1111/j.1460-2466.1992.tb00769.x
* Contribuição de autoria: o único
autor foi responsável pela concepção do trabalho, análises
empíricas e elaboração do manuscrito.
* Nota: o Comitê Acadêmico da revista aprovou a publicação do artigo.
* O conjunto de dados que apoia os resultados deste estudo não está disponível para uso público. Os dados da pesquisa serão disponibilizados aos revisores, se necessário.
Artículo publicado em acceso abierto bajo la Licencia Creative Commons - Attribution 4.0 International (CC BY 4.0).
IDENTIFICAÇÃO DO AUTOR
Ana Paula da Rosa. Pós-doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (Brasil). Doutora em Ciências da Comunicação –na linha de Midiatização e Processos Sociais– pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Brasil). Mestre em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná (Brasil). Graduada em Jornalismo pela Universidade de Passo Fundo (Brasil). Professora e pesquisadora na Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Brasil), onde atua no Programa de Pós-Graduação em Comunicação na linha de pesquisa Linguagens e Tecnologias da Comunicação. Em 2022 foi professora visitante na Södertörn University (Suécia), pelo projeto Capes/Stint. Líder do grupo de pesquisa Laboratório de Circulação, Imagem e Midiatização e membro da Rede Internacional de Pesquisa em Midiatização e Processos Sociais.
i Este artigo é fruto do projeto Capes/Stint e vincula-se a projeto em desenvolvimento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil, intitulado: “Entre imagem, imaginário e midiatizacão: articulações teórico-empíricas nas pesquisas em comunicação e na experiência imagética de conflitos”. Alguns pontos desta discussão foram apresentados em comunicação oral na Mesa de Rede de Pesquisa Narrativas Midiáticas Contemporâneas (RENAMI) - Narrativas Jornalísticas e Midiatização, do Associação Brasileira de Pesquisadores em Jornalismo (SBPJOR), 2023.
ii A expressão retrato de coragem utilizada aqui e também no título deste artigo se refere à manchete da reportagem da revista Vogue em um jogo de sentido: é tanto a menção ao título, como uma crítica à ideia de um retrato, termo amplamente utilizado na fotografia como um registro imagético que captura caraterísticas e emoções numa espécie de imagem-síntese.
iii “Os conflitos podem ser definidos de forma simples. Essencialmente, são lutas entre interesses e perspectivas opostas” (tradução nossa).
iv “A perspectiva da midiatização, com a sua insistência em analisar o papel dos media na cultura e na sociedade como um processo de longo prazo” (tradução nossa).
v “A equipe de Zelensky consistia principalmente de seus colegas roteiristas que estavam cientes do papel que a narrativa desempenha na ecologia da mídia atual. Eles abraçaram a viralidade, a capacidade de compartilhamento e outros aspectos dialógica da mídia, mas acima de tudo, apostam na narrativa transmídia (Horbyk, 2020). Eles teceram habilmente uma narrativa imersiva que abrangeu várias formas de mídia, incluindo uma série de TV fictícia em que Zelensky desempenhou o papel de um estranho não sistêmico que inesperadamente se torna um presidente de sucesso. A superioridade de sua narrativa foi perceptível em todas as etapas da campanha, resultando na vitória confiante de Zelensky nas eleições presidenciais e posteriormente parlamentares em quase todas as regiões ucranianas (apagando a divisão eleitoral pós-2004, que finalmente eliminou o apoio que o país fendido narrativa repousava) (Chaisty & Whitefield, 2022). Quando a Guerra Russo-Ucraniana passou de sua fase híbrida e relativamente de baixa intensidade (2014-2022) para uma guerra total (2022-presente), o mesmo modelo de narrativa transmidiática foi empregado na diplomacia pública em tempos de guerra” (Tradução nossa).