A QUEDA DO MURO

Autores/as

  • Marcos Farias Ferreira

Resumen

É hoje banal dizer que a queda do muro de Berlim marcou o início de uma nova era, não só nas relações internacionais, mas também no estudo académico da disciplina que tem o mesmo nome – Relações Internacionais. Testemunhei ambos inícios faz agora vinte anos, em primeira mão, e as palavras que se seguem são uma genealogia dessas origens.

Tinha dezoito anos quando o muro caiu e encontrava-me à espera de entrar na Universidade. Enquanto a Europa acolhia com perplexidade e júbilo a mudança política, o ensino superior em Portugal vivia momentos conturbados e o ano lectivo só começaria no início de Janeiro seguinte. Visto à distância, o atraso parece-me agora providencial. Permitiu-me seguir pela televisão – com todo o tempo do mundo, e sem ter que me dedicar às sebentas que já me esperavam no palácio Burnay da rua da Junqueira – esses momentos libertários de uma Europa, e de um mundo, que desconhecia por completo.

Lembro-me dessa primeira aula com o professor Adriano Moreira, no palácio Burnay, sob o signo da queda do muro. Os tempos desafiavam a compreensão do mundo, lembro-me que repetiu, e em seguida distribuiu o seu último livro por todos os alunos da turma para demonstrar – foram estas as suas palavras – que bibliotecas inteiras haviam de repente ficado obsoletas com os acontecimentos dos meses anteriores. Lembro-me dessa aula com a gratidão que se sempre é devida a quem abre caminhos e nos ajuda a construir uma visão própria do mundo. Lembro-me dela com o brilho de que dispõem apenas as descobertas essenciais e as coisas excitantes da vida, a origem das ideias mais caras e que nos acompanham até ao fim. Foi nessas aulas que descobri Václav Havel, que comecei a perceber o sentido da política e que intuí a importância da relação entre identidade, responsabilidade e autenticidade. Escrevi-lhe uma carta em 2001, quando já era presidente da República Checa (e que não sei se alguma vez chegou a ler), a acompanhar um exemplar da minha tese de mestrado., um texto a que pus o título de “Dear Mr Havel” (título e conteúdo numa alusão explícita à carta aberta que ele próprio escrevera, em 1975, ao presidente comunista da Checoslováquia): “[p]assaram vinte e seis anos, vivemos ambos em sociedades ocidentais, democráticas, liberais e que muitos acreditam ser o fim da história. E no entanto, a mesma falta de autenticidade, a mesma dificuldade de comunicação, a mesma auto-complacência por parte das sociedades e dos governantes, o mesmo esquecimento de que a responsabilidade é o eixo fundamental da identidade humana. E a mesma satisfação com uma normalidade que sistematicamente exclui, que produz um passivo pesado e que serve os interesses dos poderosos, ignorando as vítimas e os sem-poder da era global. Enfim, a mesma e crescente dificuldade de concentração para compreender o mundo real como problema filosófico.”

Passaram vinte anos desde a queda do muro de Berlim e o início da reconciliação europeia. Os antigos satélites soviéticos são hoje membros de pleno direito da UE e um outro checo, Václav Klaus, acaba de levantar o último obstáculo – ele próprio e a sua assinatura – à entrada em vigor do tratado de Lisboa. E no entanto, a mesma necessidade de recordar a responsabilidade de Europa na criação de um mundo mais inclusivo, sustentável e equitativo. A mesma necessidade de recordar o momento em que muro caiu, ou foi derrubado – como sublinha alguns – para insistir no valor fundacional que é a construção de pontes na história da Europa. 

Hoje tenho trinta e oito anos e sinto-me herdeiro dessa Europa que derrubou o muro de Berlim, não só para se reconciliar mas, sobretudo, para transformar a política das relações internacionais. Sinto-me herdeiro desses homens e mulheres que, no chamado Leste europeu, sofreram o acosso de um dos projectos totalizantes da modernidade e se opuseram a ele com o poder da palavra, o poder dos que não têm poder. Sempre recordando, como fez questão de escrever Havel, que aquele era apenas o espelho convexo, uma imagem distorcida, porém evocadora, da sociedade ocidental a caminho do mesmo desastre (que Václav Bělohradský denominou escatologia da impessoalidade), e que só a auto-complacência impede de compreender as razões. Nestes anos, tive o privilégio de ler os manifestos, os ensaios políticos, as peças de teatro, as cartas escritas a partir da prisão por essa geração conhecida como ‘dissidente’. À distância de duas décadas, tive o privilégio de seguir os passos e as ideias de muitos daqueles que deram a vida por uma Europa unificada e sem muros. Como Jan Patočka, o filósofo checo da fenomenologia, discípulo de Husserl e porta-voz da iniciativa cívica Carta 77, que morreu após ter sido submetido a um interrogatório policial. 

Essas gerações de resistentes em nome da Europa continuam a ser grandemente desconhecidos no resto da Europa e do mundo, por muito que os prémios literários e as honras políticas se vão encarregando de difundir o reconhecimento merecido. É o caso de Hertha Müller, a romena de língua alemã que recebeu o prémio Nobel da literatura 2009, Győrgy Konrád, Tadeusz Mazowiecki, Imre Kertész, Czesław Miłosz ou Doina Cornea. Mas tive o privilégio de viajar por essa outra Europa, logo a seguir a ter entrado na Universidade, e cruzar-me com as faces anónimas dos que, com ansiedade e desespero, descobriam o outro lado da mudança política e que a transição para uma sociedade aberta não era coisa nem fácil nem imediata. Fui várias vezes a Praga e a São Petersburgo nesses anos noventa, e fui testemunha do bom e do menos bom que trouxeram os novos ares políticos. Da Praga cinzenta e despida de gente à Praga colorida e formigueiro de turistas; da imensa aldeia de Leninegrado, de filas a perder de vista para comprar pão e botões, à São Petersburgo cosmopolita e das lojas de luxo. Dessa primeira visita à cidade que foi de Pedro, depois de Lenine, e outra vez de Pedro recordo com pudor a ida a uma aula de espanhol, na Faculdade de Pedagogia de Leninegrado. Lembro-me do desencanto da professora, russa, que depois de me pedir que olhasse em redor, para roupas e móveis dentro da sala de aula, concluía que tudo tinha parado no tempo, algures nos anos 1960. O desencanto dessa professora não mais o pude esquecer – tenho pena de não ter retido o seu nome – e misturei-o com a opressão da alma e a ansiedade que senti, nesses dias do fim da URSS, por causa do céu baixo e de chumbo. A noite perpétua desses dias de Dezembro era uma metáfora que só mais tarde compreendi e relacionei directamente com as palavras de George Orwell em 1984

As imagens do muro em 1989 sucedem-se em todas as televisões, neste domingo oito de Novembro de 2009, enquanto procuro escrever o meu texto. O muro derrubado, perfurado, pintalgado, atravessado pela chusma exultante, inútil na função que as autoridades da República Democrática Alemã que haviam atribuído em 1961. E as mesmas perguntas assaltam-me: o muro de Berlim caiu ou foi derrubado? Deve dizer-se a ‘queda’ ou o ‘derrube’ do muro? A palavra muro deve escrever-se com ‘m’ maiúsculo ou minúsculo? Pormenores, provavelmente, mas não posso deixar de me confrontar com eles se quero terminar este texto. E no entanto, muito se esconde por detrás do que parecem simples pormenores, aspectos cruciais da teoria social e da interpretação da história. Estas questões não são despiciendas, e representam o cerne da discussão sobre as causas – ou melhor dizendo, sobre as razões – do fim dos regimes comunistas, da coesão do bloco soviético e da ordem internacional bipolar. Tudo isto foi o resultado da acção dos actores externos, da sublevação dos povos, ou da acção de actores externos, da competição militar, económica e tecnológica dos Estados Unidos e seus aliados ocidentais? A sublevação dos povos do chamado Leste europeu derrubou, de facto, os regimes comunistas, ou estes caíram pelo desgaste de décadas da sua legitimidade e pela incapacidade de cumprir o projecto? Queda ou derrube? Provavelmente as duas coisas, a acção endógena e a influência exógena, agencialidade e estrutura. Finalmente, muro com maiúscula ou minúscula? A primeira solução é a dos que entendem que a sua importância na história (ou História?) merece letra capital; a segunda é a da simplicidade da escrita e a que não deixa no esquecimento o passivo dos mortos caídos na tentativa de o atravessar. Um muro é sempre um muro, ainda que esteja em Berlim e tenha mudado o curso da história da Europa e do mundo.

A recordação dos vinte anos passados sobre a queda, ou o derrube, do muro de Berlim coincide com a entrada em vigor do tratado de Lisboa e um novo passo na integração europeia. A coincidência é mais que simbólica e obriga a cumprir as expectativas criadas a 9 de Novembro de 1989. Após anos de indecisão e contínuos reveses, acabaram os pretextos para o défice de Europa, tanto no plano interno como no exercício do poder normativo para a produção de governação global. Assim queiram e saibam os dirigentes dos vinte e sete, e os que agora serão chamados a desempenhar os novos cargos europeus criados pelo tratado reformador.

 



*Doctor en Relaciones Internacionales. 
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. 
Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.

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Publicado

2009-11-12

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