O plano Sarkozy e a Europa fortaleza

Autores/as

  • Marcos Farias Ferreira

Resumen

As sociedades europeias encontram-se num momento especialmente delicado de renegociação daquele contrato que forja sociedade e vida em comum, e que pensadores como Rousseau, Locke e Hobbes colocaram no centro da sua visão da política. A política na Europa é cada vez mais governação colectiva e convergência normativa – europeização, para utilizar um termo que se tornou de uso corrente –, mas a Europa está longe de controlar todos os elementos do sistema global em que lhe aconteceu dar estes passos decisivos para a integração política. As tendências demográficas e o movimento global de pessoas, por exemplo, são desafios para os quais a Europa tem clara dificuldade em encontrar respostas adequadas aos seus próprios interesses, além de moralmente justificáveis e consentâneas com a influência que ambiciona exercer no mundo. E no entanto, a queda do muro de Berlim, em 1989, foi celebrada como o grande reencontro dos europeus, e destes com o mundo, com a promessa de inaugurar uma nova era de relacionamentos globais mais equitativos e solidários e, sobretudo, portadores e produtores de segurança humana. 

O espírito de abertura e unificação de 1989 já vai longe, e as sociedades europeias têm demonstrado fortes resistências a assumir o legado desse momento fundador e a retirar dele as consequências que se imporiam. Sejamos claros, a celebração é um momento catártico, de aceitação do outro, passageiro, e os muros que se derrubam dificilmente deixarão de ser substituídos por outros muros e as pontes que entretanto vão sendo lançadas dificilmente resistem ao regresso cíclico e oportunista da política identitária. Como a simbólica stari most de Mostar, na Bósnia. Condicionadas e afligidas pelo regresso em força da doutrina da segurança nacional, após 11 de Setembro de 2001, e pela clara estagnação económica dos últimos anos, as sociedades europeias vão cedendo à tentação de encontrar no outro as razões para o seu relativo declínio e insegurança, sentimento de que se aproveitam políticos mais ou menos populistas. Os recorrentes problemas com cidadãos extra-comunitários nos aeroportos um pouco por toda a Europa é bem o sinal desse sindroma de assédio que se vai estendendo e começa a ter expressão legislativa. E no entanto, o estigma da emigração começa a atingir também cidadãos e grupos de países de dentro da própria União Europeia, numa atitude que muitos consideram tributária do racismo e da xenofobia.  

Meados do mês de Maio: a eurodeputada Viktoria Mohacsi desloca-se a Roma e a Nápoles para visitar os acampamentos de ciganos, muitos de origem romena, atacados e obrigados a fugir. Mohacsi informou com carácter de urgência o Comité de Direitos Humanos do Parlamento Europeu. Na sua opinião, os factos que apurou são de extrema gravidade, decorrentes da criminalização colectiva dos ciganos. Os políticos são acusados de incitar ao ódio e a polícia de não cumprir a lei e de violar direitos humanos básicos quando procede a detenções e ao controlo indiscriminado dos acampamentos. O governo Berlusconi alega que o país vive uma emergência de medo e insegurança – motivada por alguns crimes muito mediatizados e perpetrados por cidadãos romenos nos subúrbios das grandes cidades. A resposta de Mohacsi é exemplar: num estado de direito, a segurança não se consegue perseguindo e criminalizando uma comunidade inteira. Numa entrevista ao diário espanhol El País, Mohacsi considera que o governo alimenta o ódio e que é inadmissível que muitos ciganos não tenham ainda conseguido a nacionalidade italiana, mesmo tendo nascido em Itália ou vivendo aí há quarenta anos. Na mesma entrevista, a eurodeputada considera-se assustada e horrorizada. 

O governo Berlusconi responde com um projecto de lei que criminaliza a imigração ilegal e promete colocar em centros de detenção milhões de estrangeiros com ordem de expulsão. As dificuldades óbvias de pôr a lei em prática e a multiplicação das vozes críticas, dentro e fora de Itália, faz titubear o governo. Berlusconi parece demarcar-se pessoalmente do projecto mas os aliados da Lega Nord mostram-se inflexíveis. Roberto Maroni, o ministro do interior, nega qualquer recuo e considera que a criminalização da imigração ilegal é o instrumento mais eficaz para proceder à expulsão rápida de indivíduos indesejáveis, com ou sem detenção. Entretanto, sem publicidade e sem notas de imprensa, utilizando antes a via doDiário Oficial do Estado, Sílvio Berlusconi acaba de conceder poderes extraordinários aos delegados do governo em Roma, Milão e Nápoles no sentido de “utilizarem todas as medidas úteis e necessárias para a superação da emergência colocada pelos ciganos”. Os graves ataques e as repetidas declarações discriminatórias de membros do governo Berlusconi contra a comunidade cigana mereceram o repúdio do Vaticano e do próprio presidente da República italiana. Giorgio Napolitano denunciou os casos de intolerância verificados recentemente e pediu a todos os cidadãos e instituições que sejam firmes na luta contra “qualquer risco de retrocesso civil” no país. As palavras utilizadas por Napolitano dificilmente poderiam ser mais eloquentes. A influente Louise Arbour, Comissária da ONU para os Direitos Humanos criticou duramente as políticas repressivas do governo italiano e a vice-presidente do governo espanhol, María Teresa Fernández de la Veja, provocou mesmo uma mini crise diplomática ao considerar o governo Berlusconi como xenófobo e racista. O tom da polémica baixou consideravelmente mas o mal-estar e o desconforto permanecem. 

Contudo, as reticências existem no seio do próprio governo Berlusconi. Mara Carfagna, a ministra da igualdade de oportunidades, pôs o dedo na ferida ao lembrar que a política repressiva da imigração pode conduzir a um “drama socioassistencial” em Itália, onde centenas de milhares de famílias dependem dos imigrantes para tarefas cruciais do dia-a-dia. As associações de imigrantes e consumidores estimam que o número de empregados domésticos estrangeiros chegue a 1,7 milhões, dos quais apenas 745 mil estão registados no ministério das finanças, sobretudo peruanas, equatorianas e filipinas, mas também romenas. Os restantes nem sequer dispõem de autorização de residência. Da esquerda, o partido Italia dei Valori usou o sarcasmo para lembrar a Maroni que entre imigrantes ilegais e empregadores que se aproveitam do facto e o alimentam, um destes dias poderia ver-se a braços com 3 milhões de pessoas na prisão. Para evitar a simplista dicotomia entre direita e esquerda, vale a pena referir aqui o relatório da Amnistia Internacional que assinala o próprio Walter Veltroni, o chefe da esquerda, como um dos primeiros políticos italianos a utilizar os sentimentos xenófobos contra aos romenos que vivem em Itália. Por outro lado, da direita começam a surgir declarações anti-racistas, como as do edil de Roma Gianni Alemanno quem, num primeiro momento, chegou a invectivar contra os média estrangeiros que denunciaram os ataques à comunidade cigana. 

Mas o ambiente restritivo e hostil face à imigração não é exclusivo de Itália. A França, a Bélgica, a Dinamarca, a Holanda, a Suíça, a República Checa, o Reino Unido, todos estes países assistiram nos últimos anos à emergência de um discurso conservador e securitário que encontra na imigração o bode expiatório ideal. De acordo com Robert Marquand do The Christian Science Monitor, as vozes extremistas e nacionalistas antes monopolizadas por Jean-Marie Le Pen em França fazem hoje parte do discurso utilizado pelo centro político e a imigração é vista como uma crise, tanto pela direita como pela esquerda. Mesmo em Espanha, o discurso parece ter mudado sensivelmente desde a campanha para as eleições legislativas de Março último, em que o conflito que opôs Zapatero a Rajoy foi muitas vezes descrito como o conflito entre a tolerância e a intolerância. Não foi preciso o novo ministro do trabalho e imigração tomar posse para se perceber que o discurso oficial tinha endurecido. Reconhecendo as inquietações sobre o tema que fizeram deslocar parte do eleitorado para o Partido Popular, Celestino Corbacho passou a falar insistentemente da necessidade de governar com firmeza o fenómeno da imigração, reforçando a sua vinculação com as necessidades do mercado laboral. 

Em França, Nicolas Sarkozy chegou à presidência com um discurso duro e intransigente neste tema. Além do mais, são especialmente polémicos o recurso a testes de ADN para imigrantes que requerem a reunião da família em solo francês e o novíssimo pacto de imigração que muitos, em Espanha por exemplo, vêem como assimilação forçada e com alternativas nas leis já existentes. Tomando o relevo da presidência da União Europeia a partir de 1 de Julho próximo, o governo francês já elegeu como objectivo principal a adopção de um pacto europeu para a imigração, o chamado plano Sarkozy que há meses anda a ser negociado com alguns dos parceiros europeus, designadamente com Rodríguez Zapatero. O plano centra-se num endurecimento da política de imigração a nível europeu para limitar a entrada de imigrantes e assenta em cinco pilares: o controlo das fronteiras externas por parte de uma polícia europeia especial, a selecção dos imigrantes, a agilização das expulsões, a adopção de uma política comum de asilo e o fortalecimento da ajuda ao desenvolvimento dos países de origem dos imigrantes. Para além disto, o plano exorta os estados da UE a renunciar às regularizações maciças porque produzem efeito de chamada e interferem nas opções tomadas pelos estados vizinhos. 

Sendo um espaço de livre circulação de pessoas, bens, serviços e capitais onde desapareceram as fronteiras internas, a União Europeia carece todavia de uma política de imigração, pelo que neste tema vigoram direitos nacionais muito diferentes uns dos outros. A necessidade de harmonização é destacada por muitos, tendo até agora sido aprovadas apenas quatro directivas: sobre o reagrupamento familiar, em Setembro de 2003; sobre o estatuto de residentes de longa duração, em Novembro de 2003; sobre as condições de admissão de estudantes, em Dezembro de 2004 e sobre a admissão de investigadores, em Outubro de 2005. Nos últimos meses têm-se sucedido as negociações para a aprovação de uma directiva relativa à expulsão de imigrantes ilegais, isto é sem-papéis, que aproxime os procedimentos díspares em vigor nos 27 países-membros. Finalmente, no passado dia 5 de Junho os 27 ministros do interior da UE aprovaram a directiva que estabelece garantias judiciais aos imigrantes no tratamento do seu processo e prazos máximos de internamento em centro de detenção. Caso seja aprovada pelo Parlamento Europeu, a norma virá a aplicar-se a cidadãos não pertencentes à UE e sem autorização de residência, ficando de fora os processos de petição de asilo. A directiva de retorno – a que alguns já baptizaram de directiva da vergonha – prevê o estabelecimento de um prazo máximo de detenção de imigrantes ilegais de 6 meses – que pode ir até aos 18 meses em casos específicos – onde até agora os procedimentos eram muito desencontrados. Em Portugal e Espanha, o prazo máximo é de 60 dias, após o qual o imigrante tem de ser libertado; na Alemanha é de 18 meses, enquanto na Lituânia é de 20 meses. No Reino Unido, Dinamarca, Estónia, Finlândia, Grécia, Irlanda, Malta, Holanda e Suécia a detenção de imigrantes ilegais é ilimitada, pelo que o prazo estabelecido resultou necessariamente de um compromisso e representa um máximo – onde antes não o havia –, não um prazo obrigatório. 

Para além deste ponto, a directiva estabelece um período de 7 a 30 dias para que os imigrantes abandonem o país de forma voluntária, a proibição de regresso por um período máximo de 5 anos – de que estão excluídas as vítimas de tráfico de pessoas, a garantia de assistência jurídica nas mesmas condições que se oferecem aos requerentes de asilo, e a garantia dos interesses dos menores sem família que devam ser repatriados. O texto agora aprovado pelo Conselho de Ministros da UE representa um endurecimento face ao projecto apresentado pela Comissão Europeia em Setembro de 2005, e gera fortes críticas de alguns grupos políticos com representação no Parlamento Europeu. A favor do compromisso estão os eurocépticos e os populares europeus, mas também os socialistas que se encontram no poder actualmente – na Espanha, Portugal, Reino Unido e Alemanha. As principais reservas políticas foram expressas pelos socialistas que não são poder nos seus países – italianos, belgas e franceses –, pela restante esquerda e pelos verdes que consideram a medida demasiado repressiva, mas também no seio dos liberais democratas.  Fortemente críticas são as igrejas cristãs europeias. Os bispos católicos reunidos na comissão das conferências episcopais dos países da UE (Comece) disseram-se muito preocupados e pediram ao Parlamento Europeu que se limite o uso da detenção administrativa. Para os bispos europeus, o compromisso emergente em matéria de imigração não toma suficientemente em consideração a condição humana do imigrante.



  *Doctor en Relaciones Internacionales. 
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. 
Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.

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Publicado

2008-06-12

Número

Sección

Política internacional