Merkel em Gdansk ou a política por outros meios

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Resumen

Jogava-se a segunda parte do Alemanha X Grécia na antiga Danzig alemã, os germânicos controlavam o jogo e venciam por 1–0, mas eis que um passe longo isola Sapingidis na ala direita do ataque grego, este centra para a área alemã onde Samaras se desembaraça de Boateng e remata para a baliza, batendo Manuel Neuer. Aos 55 minutos da segunda parte o marcador está agora empatado, a Grécia tinha feito aquilo que sabe fazer melhor — aproveitar as pouquíssimas oportunidades de que dispõe em cada jogo — e por minutos conseguia instalar a incerteza quanto ao desenlace desta partida dos quartos-de-final do Euro 2012.

Conseguiriam os gregos aguentar a carga germânica mais meia hora e voltar a apanhar em contra-pé a sua defesa? Seria possível a bola voltar a pingar para a área alemã e encontrar o pé ou a cabeça providenciais de um Salpingidis, de um Samaras ou de um Karagounis? Conseguiria a Grécia eliminar a poderosa e mais que favorita Alemanha? Muitos torcedores gregos presentes no estádio de Gdansk empunhavam capacetes espartanos, como que relembrando duelos ancestrais e querendo acreditar na vitória improvável de um David contra Golias. Haviam pintado na cara a cruz e as riscas azuis e brancas da dignidade grega e ansiavam pelo favor dos deuses. Mas com os olhos postos na chanceler Merkel, sentada na tribuna VIP, temem o pior.

Por estes dias, joga-se a fase final do campeonato europeu de futebol (conhecido por Euro) que, pela primeira vez na história, se realiza a Leste de Viena. A organização conjunta da Polónia e Ucrânia não deixou de estar envolta em polémica, a começar pelas contínuas dúvidas sobre a capacidade logística de ambos países e acabando na eliminação de cães vadios, aprovado centralmente pela presidente da Ucrânia nas vésperas do Euro, numa campanha para melhorar a imagem do país. No plano político, inúmeros dirigentes europeus, a começar pelos da Comissão europeia, fizeram questão de anunciar previamente que não estariam presentes em qualquer evento associado ao Euro, acusando as autoridades ucranianas de infringir direitos humanos básicos no julgamento da antiga primeira-ministra Júlia Timochenko.

No plano desportivo, o Euro 2012 transformou-se num torneio com verdadeiros contornos políticos, numa espécie de sucedâneo da Europa da crise — a continuação da política por outros meios — onde as vitórias e as derrotas assumem significado expiatório e as massas buscam as epifanias que lhes são negadas noutros planos da vida quotidiana. A Europa do Euro 2012 é a Europa da crise, subjacentes estão todas as tensões, entre Norte e Sul, entre credores e devedores, entre liberais e socialistas, entre monetaristas e expansionistas. Mas também as que seriam de esperar num duelo entre vizinhos de Leste. Aquando do jogo da fase de grupos entre a Polónia e a Rússia, disputado em Varsóvia, adeptos dos dois países envolveram-se em escaramuças numa cêntrica praça da capital polaca, dando origem a uma azeda troca de palavras entre autoridades. No campo de jogo, tanto polacos como russos ficaram fora do Euro; seguiram em frente checos e gregos. Na Europa do futebol, como na da moeda, ninguém quer ficar fora do Euro.

É verdade que nas últimas décadas o campeonato europeu de futebol foi ganhando prestígio e transformou-se no terceiro evento mais importante a nível mundial, logo a seguir aos Jogos Olímpicos e ao campeonato mundial de futebol. Mas o Euro 2012 é, por assim dizer, algo diferente. Num contexto de crise, o prestígio de todos os países está em causa de forma dramática e conseguir a qualificação para o Euro tornou-se uma questão de vida ou morte. Durante dois anos, a presença de Portugal foi periclitante, e os casos e descasos da seleção de futebol foram seguidos como mais um sinal da crise e da erosão do prestígio do país na Europa. Finalmente foi possível disputar uma última vaga nos play-off, contra a Bósnia e Herzegovina, a duas mãos, a qualificação foi garantida e a sensação de normalidade reposta. Portugal garantira a presença no Euro, pelo menos no Euro do futebol.

Entretanto, em Gdansk, o jogo Alemanha X Grécia prossegue. Animados da bancada VIP pela chanceler Merkel, os jogadores germânicos acordam e reagem ao golo do grego Samaras. Enquanto esbraceja, a chanceler alemã antecipa duelos que virão com outro Samaras — o primeiro ministro grego recém empossado — e os movimentos da pequena senhora denunciam o entesamento face às condições do resgate grego, aos eurobonds, às funções do BCE ou às garantias estatais do resgate aos bancos espanhóis. Nada disto se joga no relvado de Gdansk — aqui só se joga futebol — mas nem sequer a chanceler Merkel quer arriscar um milímetro do prestígio e do favoritismo alemães. É o Euro do futebol mas bem poderia ser o Euro da moeda única. E eis que no relvado de Gdansk a Alemanha carrega e os gregos não conseguem aguentar a pressão. Aos 61 minutos Khedira desmarca-se na área grega e com um remate de primeira desfaz finalmente o empate. Pouco a pouco o marcador vai-se alterando: 2–1, 3–1, 4–1… Nas bancadas, os espartanos meio despidos, de feições ampliadas pelas câmaras da UEFA, esboçam preocupação e não param de assobiar na direção da chanceler Merkel a cada novo golo.

Da incerteza do resultado passa-se rapidamente à possibilidade da goleada. A debacle grega já é uma realidade e ainda faltam 15 minutos para o final da partida. O resultado é pesado mas ainda há tempo para se agravar, quase parece a evolução do spread da dívida grega face à alemã, que não para de aumentar. Não seria de admirar se os mercados reagissem com pânico a esta derrota, baixando o rating dos bancos gregos, das cidades gregas, da dívida soberana e até do Partenon, ou se a troika exigisse mais medidas de ajustamento para compensar. Afinal, o futebol é ou não é um barómetro fiel das condições sociais e políticas? Quase ao cair do pano, Boateng interceta a bola com a mão na área alemã e provoca uma grande penalidade. Salpingidis marca e estabelece o 4–2 final. A goleada atenua-se mas o resultado é inequívoco. Na tribuna VIP, a chanceler Merkel exulta mas face aos media contém-se e declara que teve a impressão de que a Alemanha foi apenas ligeiramente superior à Grécia. No seu íntimo porém, sabe que a normalidade foi reposta, que o prestígio alemão está intacto e que a Europa foi salva, por agora, dos bárbaros desordeiros do Sul que não pagam, nem dívidas nem impostos. Por agora, pois neste Euro 2012 nada está ganho, haverá ainda mais duas rondas. Nas meias-finais os seus terão que haver-se contra a Itália e, na final, contra a Espanha ou contra Portugal: a contenção contra o despesismo, a eficiência contra o desperdício, os aforradores contra os gastadores. Por detrás do seu contentamento, a chanceler Merkel sabe que não vai ser fácil vencê-los a todos e levar por fim a melhor sobre o Sul. Foi por isso que prometeu estar presente nos campos da Polónia e da Ucrânia, como uma espécie de número 12, o trunfo supremo da seleção alemã.

A chanceler Merkel é uma guerreira empedernida e incansável. Depois das celebrações da vitória sobre os gregos apanha o avião com destino a Roma e prepara-se para mais um embate. Desta vez não se trata de futebol, mas o desafio não é menos exigente. Deve encontrar-se com Monti, Hollande e Rajoy para negociar um plano de 130 mil milhões de euros de estímulo à economia do continente. Atravessando a Europa a caminho de Roma, enquanto olha, pela janela do avião, para o fundo da noite europeia, a chanceler Merkel abana a cabeça em sinal de reprovação e pondera: «Quando será que vão aprender que têm que arrumar a casa e que o dinheiro da Alemanha não poderá salvar o Euro?»

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Publicado

2012-07-12

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