O sistema partidário português e o triplo escrutínio de 2009

Autores/as

  • Marcos Farias Ferreira

Resumen

O actual sistema partidário português é herdeiro directo da Revolução de Abril de 1974, que instituiu a Segunda República, mas as suas raízes remontam à organização política da resistência ao regime anterior, uma ditadura que se proclamou como Estado Novo, e que durou entre 1926 e 1974. Dos cinco partidos com representação na Assembleia da República – o Parlamento português – quatro deles foram criados antes da revolução ou nos meses que se seguiram a Abril de 1974. Apenas um deles pode ser considerado como outsider num sistema partidário consolidado, surgindo no final da década de 1990, a partir da fusão de pequenos partidos, e mais como movimento do que como partido tradicional.

O actual Partido Comunista (PCP), presente na Assembleia da República, foi fundado em 1921, durante a vigência da Primeira República (1910-1926) – e ainda antes do golpe de estado que deu origem ao Estado Novo, tornando-se na principal organização de resistência à ditadura até à década de 1970. O Partido Socialista (PS), na sua forma actual, foi fundado em 1973, na República Federal da Alemanha, apoiado directamente pelos alemães do SPD e fundado na tradição social-democrata europeia. O actual Partido Social-Democrata (PSD) foi fundado já depois da Revolução, em Maio de 1974, com o nome de Partido Popular Democrata (PPD). A inclinação esquerdista da Revolução e, por conseguinte, a necessidade de reclamar uma parte na herança da luta contra a ditadura de direita fez com que a dimensão social da política surgisse nos programas de todos os partidos. Assim, rapidamente o PPD se tornou PPD-PSD. O Centro Democrático e Social (CDS) foi fundado em Julho de 1974, centrado na tradição democrata-cristã, mas o estatuto abria tanto ao centro-esquerda como ao centro-direita, reflectindo a dificuldade do aparecimento de partidos de direita no Portugal pós-1974. A partir do fim da década de 1990, o CDS deixou definitivamente a pretensão de ser um partido de charneira e assumiu a sua vocação de direita, juntando à sigla CDS a fórmula Partido Popular e surgindo, a partir de então, como CDS-PP. Finalmente, o Bloco de Esquerda (BE) surge em 1999 da aglutinação de pequenos partidos da esquerda revolucionária e com mínima expressão, entre eles a UDP (marxistas), o PSR (trotskistas) e a Política XXI (pós-comunistas). A estes, foram-se juntando cidadãos sem filiação partidária anterior e outros movimentos de opinião, designadamente sindicalistas, católicos, ambientalistas e LGBT. Os três partidos fundadores do BE extinguiram-se entretanto e transformaram-se legalmente em associações de reflexão política. O BE consegue eleger os seus primeiros dois deputados à Assembleia da República nas eleições legislativas de 1999 e o seu primeiro deputado europeu nas eleições de 2004, efectuando assim uma transformação do sistema partidário e dos equilíbrios políticos no Parlamento. 

Até 1987, a formação e a estabilidade dos governos em Portugal estiveram muito condicionadas pela dificuldade de obtenção de claras maiorias parlamentares e pelo exercício de poder significativo por parte do Presidente da República. É preciso compreender que o sistema político português não é parlamentarista puro; é antes considerado semi-parlamentar, ainda que uma série de revisões constitucionais efectuadas nas décadas de 1980 e 1990 tenha recortado em muito a margem de manobra do Presidente. O sistema eleitoral proporcional, apurado através do método de Hondt e baseado em círculos eleitorais regionais que correspondem aos distritos administrativos, sempre tornou difícil a obtenção de uma maioria absoluta no Parlamento. Nos primeiros anos após a Revolução, a fragmentação do sistema partidário e a dispersão dos votos exigiu a formação de governos de iniciativa presidencial, liderados por personalidades de prestígio e da confiança do Presidente da República mas gozando de fraco apoio parlamentar. Posteriormente e até 1987, PS e PSD revezaram-se na constituição de governos minoritários ou de coligação com o CDS, e por uma vez governaram juntos (1983-1985) naquilo que ficou conhecido como governo de bloco central. Em 1987, o PSD obteve a primeira maioria absoluta que revalidou nas eleições legislativas de 1991. Em 1995 e em 1999, o PS ganhou as eleições com maioria simples mas com um número de deputados no Parlamento muito próximo da maioria absoluta, o que lhe permitiu governar com estabilidade e levar até ao fim a primeira das duas legislaturas. Para isso, o governo de António Guterres estabeleceu acordos de incidência restrita com alguns deputados do PSD e do CDS, do arquipélago da Madeira e do Minho, respectivamente, com o objectivo de ver aprovados os orçamentos anuais apresentados. 

A nova década assistiu a uma nova inversão da tendência – constituição de maiorias absolutas que duram toda a legislatura – com a demissão de António Guterres de chefe do governo e de Secretário-Geral do PS, no seguimento da hecatombe do partido nas eleições municipais de Dezembro de 2001. Os resultados das eleições legislativas antecipadas (2002), paras as quais o PS teve de eleger, a toda a pressa, um novo Secretário-Geral, fizeram reeditar a coligação governativa dos anos 1980 entre PSD, o partido mais votado, e o CDS. O governo foi encabeçado por Durão Barroso, presidente do PSD, quem passados dois anos (2004) o haveria de abandonar para ocupar o lugar de Presidente da Comissão Europeia. Esta ocasião trouxe de novo o papel, e os poderes, do Presidente da República ao centro do sistema político português, uma vez que a solução para a saída de Durão Barroso teria que contar com o seu aval político. Dissolução da câmara e convocação de novas eleições, governo de iniciativa presidencial com a mesma maioria parlamentar ou substituição do Primeiro-Ministro cessante pelo novo líder do PSD e constituição de um novo governo, a solução passou pela decisão política do Presidente Jorge Sampaio. Entre as várias opções, este decidiu-se por dar posse a um novo governo encabeçado por Santana Lopes, o novo líder do PSD. 

Pese embora tenha empossado o novo governo do PSD sem recurso a eleições antecipadas, Jorge Sampaio prometeu manter a acção do novo governo debaixo de atenção especial. Na sequência de uma série de incidentes que envolveram a quebra da confiança política no seio do governo de Santana Lopes e pressões sobre a televisão pública por parte do ministro da tutela, o Presidente Jorge Sampaio resolveu utilizar o poder mais extremo que lhe é conferido pela Constituição, apelidado de bomba atómica, dissolvendo a Assembleia da República e convocando eleições legislativas antecipadas (2005). Nelas, Santana Lopes pelo PSD defrontou José Sócrates, pelo PS, e o resultado do confronto agravou a deriva do sistema político português, já evidenciada desde finais dos anos 1980 com os governos de Cavaco Silva, para uma espécie de presidencialismo do Primeiro-Ministro. A vitória do PS nas legislativas de 2005 significou o regresso aos governos que contam com apoio parlamentar absoluto, o que reforçou inevitavelmente o perfil e a intervenção do chefe do governo como actor fulcral e decisivo da governação e deixou para segundo plano a necessidade de encontrar compromissos com as oposições. Entre 2005 e 2009, José Sócrates fez questão de aparecer como o campeão da reforma e modernização do Estado, sem compromissos com os sectores sociais afectados nem com os interesses instalados. A maioria parlamentar absoluta não evitou, porém, a erosão da sua imagem junto da opinião pública e os efeitos da crise global sobre o desemprego acabaram por o obrigar a recuar, na saúde e no ensino, designadamente, para tentar salvar a reeleição em 2009. O confronto com as populações, a propósito da reforma do sistema de saúde, e com os professores do ensino secundário, a propósito da implementação de um regime de avaliação, passaram factura e em muito contribuíram para a perda da maioria absoluta nas recentes eleições legislativas. 

O corrente ano de 2009 foi ano de triplo escrutínio para os partidos políticos e, mais directa ou indirectamente, para o próprio governo. Em Junho celebraram-se as eleições para o Parlamento Europeu, em Setembro as eleições legislativas e, no passado Domingo, as eleições municipais – ou autárquicas, como se lhes chama em Portugal.  Em fim de legislatura, todos as eleições assumem, de uma forma ou outra, o carácter de escrutínio sobre a actividade governativa, se bem que ao fim de 35 anos de democracia, o eleitorado português tenha já demonstrado maturidade suficiente para separar os actos eleitorais e o que está em jogo em cada um deles. Apesar de tudo, as eleições europeias continuam a ser as que gozam de menor prestígio junto dos eleitores, e com isto quero dizer que assim se justifica a maior taxa de abstenção – o voto não é obrigatório em Portugal – e a sua utilização estratégica como instrumento de avaliação do governo. É o momento político, por exemplo, que o eleitorado costuma aproveitar para mostrar um ‘cartão amarelo’ ao governo, ou seja, para o advertir do descontentamento provocado pelas opções da governação. O mesmo aconteceu este ano. O descontentamento face a algumas opções do governo PS teve expressão na derrota eleitoral nas eleições europeias. No contexto de uma abstenção recorde – 63% – o PSD venceu, tendo à sua frente a primeira líder mulher da sua história – Manuela Ferreira Leite –  e obteve 32% dos votos, ou seja, 8 mandatos no Parlamento Europeu. O PS foi sancionado e obteve apenas 26% dos votos e 7 mandatos. O BE obteve 3 mandatos relativos a quase 11% dos votos, a coligação entre comunistas e verdes (CDU) obteve 2 mandatos com 10,5%, enquanto o CDS-PP obteve outros 2 mandatos com 8% dos votos. Dito isto, PSD e CDS-PP fazem parte do Partido Popular Europeu (EPP), o PS está filiado no novo grupo da Aliança Progressista de Socialistas e Democratas (S&D), enquanto o BE, os comunistas e os verdes integram o grupo confederal da Esquerda Unitária Europeia e Esquerda Nórdica Verde. 

A campanha para as eleições legislativas decorreu num ambiente tenso. O PSD, motivado pelos resultados das europeias e pelas sondagens que encurtavam a distância para o PS, contestou as grandes obras públicas que são a bandeira do governo – novo aeroporto e comboio de alta velocidade – com base no elevado endividamento público do país e apresentou um plano alternativo para reanimar a economia, assente no apoio adicional às pequenas e médias empresas como criadoras de riqueza e emprego. O PS, para além das grandes obras públicas, apresentou-se como o campeão do estado social de bem-estar e procurou colar o PSD, e a sua líder em especial, às políticas neoliberais e ao conservadorismo dos costumes. A estratégia deu resultado, uma vez que a vantagem das eleições europeias foi anulada e o PS alcançou a vitória. Contudo, o confronto com diferentes sectores sociais, e em especial com os professores, bem como o aumento acentuado do desemprego (9%) nos últimos meses deitaram a perder a maioria absoluta. Num parlamento com 230 deputados, o PS obteve 36,5% dos votos e 97 mandatos (perdeu a maioria e 24 mandatos face a 2005), enquanto o PSD obteve 29% dos votos e 81 mandatos (ganhou menos de 1% de votos mas 6 mandatos face a 2005). Nas franjas do grande centro político, todos os partidos representados na Assembleia da República viram a sua representação aumentar. O CDS-PP recuperou o terceiro lugar com 10,4% dos votos e 21 mandatos, o BE obteve 9,8% dos votos e 16 mandatos, enquanto a coligação entre comunistas e verdes (CDU) obteve 7,9% dos votos e 15 mandatos. 

Por fim, no último Domingo foi dia de eleições municipais. O PSD era e continuou a ser o partido mais representado nas autarquias locais, num país que conta com 308 municípios. Contudo, perdeu um número significativo (21), e com a liderança em 140 municípios (em alguns, em coligação com o CDS-PP) viu o PS chegar-lhe perto. O PS passou dos 110 municípios que dirigia desde 2005 aos 131 que venceu no Domingo, e o seu Secretário-Geral proclamou-se vencedor das eleições autárquicas por ter obtido um número superior de votos (37,6% face aos 32,7% dos PSD). É verdade que as eleições autárquicas têm as suas lógicas bem locais, pouco contaminadas pelas lógicas nacionais, mas a verdade é que a liderança de Manuela Ferreira Leite se encontra ainda mais debilitada e está já aberto o processo de sucessão no seio do PSD. Quanto às outras forças políticas, o PCP mantém a implantação local de que dispões no sul de Portugal, ainda que tenha perdido alguns municípios para o PS e para listas de cidadãos independentes que, de acordo com a lei eleitoral em vigor, podem concorrer ao governo dos municípios. O CDS-PP mantém-se na liderança do único município que detinha desde 2005, o mesmo acontecendo com o BE, testemunhando estes resultados a dificuldade que têm os pequenos partidos de reforçarem a sua influência municipal. Ao nível do poder local, a grande revolução está marcada para 2013, data em que metade dos presidentes de município não poderá voltar a candidatar-se em virtude da lei em vigor que limita o exercício da liderança local (assim como de outros cargos políticos) a três mandatos, evitando o fenómeno negativo da perpetuação no poder.

Após os três actos eleitorais, o Presidente da República indigitou já José Sócrates do PS para presidir a um novo governo. As alternativas dividem-se entre a procura de um parceiro de coligação e o governo minoritário do PS. Com a recusa de Manuela Ferreira Leite, hoje quarta-feira, do convite formal endereçado por José Sócrates para que o PSD participe no novo governo, a alternativa parece ser a do governo minoritário que negoceia, lei a lei, o apoio no Parlamento. Isto porque as possibilidades de acordo global com CDS-PP, BE ou PCP se mostram irrealistas, tão distantes as suas bases programáticas relativamente ao PS e tão confrontados os seus líderes face a José Sócrates.



*Doctor en Relaciones Internacionales. 
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. 
Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.

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Publicado

2009-10-15

Número

Sección

Política internacional