Não há desastres naturais: o Haiti, o olhar compassivo e a resiliência humana

Autores

  • Marcos Farias Ferreira

Resumo

É impossível ignorar as imagens de calamidade que no início do ano chegaram do Haiti. Enxames de jornalistas e repórteres de imagem invadiram o país e apressaram-se a garantir o cumprimento da sua tarefa maior que é, asseveram, informar mas também mostrar a dor e provocar a compaixão por quem está longe e vulnerável. Informar sobre a calamidade provocada por um desastre ‘natural’, in loco, estilhaça as mais arraigadas convicções sobre a objectividade e neutralidade do jornalista (informar do sofrimento alheio é dar conta do inevitável subjectivo de que é feito o mundo humano). Como escreveu Susan Sontag no já clássicoRegarding the Pain of Others, ser um espectador das calamidades ocorridas no estrangeiro é a experiência moderna por excelência, tornada possível pela oferta cumulativa do trabalho devido a “esses turistas especializados e profissionais chamados jornalistas”. Seja como for, informar do sofrimento alheio não pode deixar de provocar dúvidas quanto ao carácter moral do olhar compassivo. Com os sobreviventes aprisionados no meio dos destroços, ou a deambular à procura de ajuda e os mortos apinhados em cada recanto, é legítimo indagar se o direito a informar e a ser informado – ou a curiosidade mórbida, dirão alguns – não se transforma em artefacto repugnante, amoral ou, pelo menos, supérfluo. Bem sei que o mecanismo da solidariedade global desencadeado não seria possível sem essas imagens e crónicas do sofrimento alheio que infundem no espectador mais incauto o sentimento de vulnerabilidade face a um desastre ‘natural’, impossível de prever, inevitável por natureza, implacável na sua destruição. Mesmo assim, é imperativo perscrutar a moral do olhar porque nada deve ser nunca dado como garantido – a bondade de nenhuma perspectiva do mundo, por exemplo – nem a carteira profissional abriga ninguém dos mais profundos dilemas morais da humanidade, aqueles que instam a decidir o que fazer, como agir, perante um caso concreto. A moral do olhar é inescapável e não há lugares seguros face a ela. Um qualquer jornalista compassivo a relatar o sofrimento provocado por um desastre ‘natural,’ no Haiti, pode bem transformar-se em vítima dela. Foi o que se passou a propósito da polémica dos paquetes de luxo que não deixaram de atracar no país, após o desastre. Num primeiro momento, os jornalistas chamaram-lhe ‘turismo de catástrofe’, sem dar conta de que, em si mesma, a expressão pouco ou nada se distingue do que poderíamos chamar ‘jornalismo de catástrofe’. Porque deveríamos atribuir ao olhar do turista aquela curiosidade mórbida, reprovável, de que ilibamos, quase automaticamente, o jornalista? Porque deveríamos condenar a sua vontade de  pôr o pé em terra firme e testemunhar, em primeira mão, o sofrimento mediado e representado pelos artifícios do jornalista? Mas será a viagem de recreio, justaposta ao sofrimento e à pobreza extrema dos haitianos, a única coisa que choca a moral do olhar compassivo? Ou até aquela que mais a choque? Num segundo momento, este ‘turismo’ já foi visto com outros olhos pelos jornalistas, assim que carregamentos de água e comida, destinados à população haitiana, começaram a sair dos paquetes de luxo. De forma reveladora, esta imagem passou então a confundir-se com as da ajuda maciça prestada pelo conjunto das organizações e estados, e o seu carácter polémico desvaneceu-se. Afinal, e se aos turistas apenas acontecera passarem por ali, no preciso momento do desastre ‘natural’, porque não conceder-lhes a legitimidade de se juntarem às hordas de cidadãos, jornalistas e estadistas compassivos, com a sua parafernália de salvamento e reconstrução? A moral do olhar compassivo diz mais sobre quem olha do que sobre quem é olhado e, no caso do Haiti, a compaixão promete transformar-se na indústria de salvação de um país inteiro, exorcizando quem sabe que culpas não admitidas por mais um desastre ‘natural’.  

As imagens da insegurança humana extrema que chegam do Haiti – das pessoas aprisionadas sob os escombros, do colapso da assistência médica e da assistência alimentar, da quebra da ordem pelo desaparecimento institucional do estado, dos campos improvisados onde falta de tudo, dos movimentos de deslocados e até do rapto de crianças – levaram-me de volta ao artigo que Timothy Garton Ash publicou, no diário britânico The Guardian, a 8 de Setembro de 2005, a propósito do desastre ‘natural’ chamado Katrina que afectou Nova Orleães. No artigo que intitulou de “It always lies below”, Garton Ash reflecte sobre a dimensão política do desastre ‘natural’, sublinhando que o furacão provocou a anarquia e que a des-civilização não se encontra tão distante das sociedades ocidentais, avançadas e civilizadas, como queremos pensar. Para os cidadãos auto-complacentes e auto-congratulatórios do primeiro mundo, o desastre do Katrina devia ser uma chamada de atenção para as vulnerabilidades sociais do mundo desigual em que vivemos (e em que as desigualdades mais gritantes atingem o próprio coração das sociedades afluentes), uma chamada de atenção para o muito que não é natural em cada calamidade produzida por um desastre natural. Estas últimas ideias não constam no artigo de Garton Ash; o que consta é outra advertência, a de não pensarmos que a quebra de ordem verificada em Nova Orleães seria inimaginável na “simpática e civilizada Europa”. Aconteceu aqui mesmo, há 65 anos, por todo o continente. Basta ler as memórias dos sobreviventes do lager nazi ou do gulagsoviético; basta ler a descrição que Norman Lewis fez de Nápoles em 1944 ou os múltiplos relatos da vida em Berlim em 1945. E voltou a acontecer na Bósnia, nos anos 1990, sem que a força maior tenha sido a de um desastre natural. No seu artigo, Garton Ash lembra a todos que os desastres ‘naturais’ na Europa foram provocados pelo homem e joga com a atribuição de qualidade ou acção humana aos desastres naturais e qualidade ou acção natural aos desastres provocados de forma humana. A hipálage utilizada resulta assim crucial, no meu entender, e pode servir como instrumento crítico para averiguar o que se esconde por detrás – ou por baixo, se seguirmos a lógica interna do artigo de Garton Ash – de cada desastre ‘natural’. Se os furacões da história europeia, que provocaram a anarquia e a des-civilização, tiveram origem humana, será assim tão seguro que os desastres provocados pelo furacão Katrina e o recente terramoto no Haiti são absolutamente naturais e desligados da acção humana? Afinal, quão natural é o desastre no Haiti? Quão natural é a calamidade e quão forjada o é pela acção humana que produz vulnerabilidades sociais e sujeita populações inteiras, no Haiti mas também em Nova Orleães, à acção dos elementos? “It always lies below” lembra-me que a natureza tem pouca estabilidade ontológica e que ela é um recurso material-semiótico polivalente, como escreveu Timothy Luke, num artigo de 2003, publicado na revista académica Alternatives. O argumento é o de que o factor material na natureza é apropriado para o ganho material (capital e ecológico) de uns em detrimento de outros, e o seu nome é utilizado para legitimar uns e deslocar outros. Para Luke, a natureza é mais estratégica do que natural. 

O que fica então dos desastres naturais? De que maneira a natureza é estratégica numa catástrofe que parece ter contornos naturais? Ela é estratégica porque acentua as vulnerabilidades sociais face aos elementos e as desigualdades no acesso ao factor material que a compõe, umas e outras produzidas por processos bem humanos que ditam o ganho de uns em detrimento de outros, nas relações entre sociedades e dentro de cada sociedade. A calamidade no Haiti veio lembrar que não há desastres naturais, um pressuposto crucial que nos deve obrigar a encarar o que se segue – a ajuda para a reconstrução do Haiti mas, para além disso, as políticas de cooperação e desenvolvimento à escala global – de uma maneira renovada.

Dito isto, um paradoxo do olhar compassivo sobre o Haiti, mediado pela parafernália da informação, pode bem vir a ser a naturalização do desastre e da inevitabilidade das suas calamidades. Ao despertar a solidariedade global e a ajuda material à população do Haiti, esse olhar compassivo dos media, a turba de turistas especializados e profissionais, pode bem contribuir para reforçar a convicção das audiências globais no carácter natural deste tipo de desastre, fazendo esquecer que a natureza é mais estratégica que natural e um recurso material e semiótico polivalente. Fazendo esquecer, por exemplo, as decisões políticas de governação local e global que têm agravado as vulnerabilidades sociais da população haitiana e contribuem para debilitar a resiliência humana face ao risco.  

Por isso é tão importante a literatura que, nos últimos dez anos, tem procurado mostrar de que forma uma parte significativa da devastação provocada por desastres naturais se deve a práticas ecológicas destructivas e potenciadoras da desgraça. É o caso do importante artigo que Janet Abramovitz escreveu, em 2001, para o Worldwatch Institute. Em “Unnatural Disasters”, Abramovitz destaca que “muitos ecosistemas foram fragilizados ao ponto de perderem a resiliência e deixarem de ser capazes de suportar choques naturais, criando as condições para os ‘desastres não-naturais’ – os que são tornados mais frequentes ou mais severos pela acção humana.” Para além do mais, estes desastres exacerbados pela acção humana sempre deixam o impacto mais gravoso sobre aqueles que menos condições têm para os enfrentar, as sociedades mais mais pobres e vulneráveis e os mais pobres e vulneráveis no seio de cada sociedade. E como lembra Abramovitz no seu artigo, a migração das populações para as cidades e zonas costeiras, a par com a expansão desordenada do ambiente construído, tem contribuído fortemente para a vulnerabilidade face aos elementos. A literatura sobre o risco e a vulnerabilidade social também tem contribuído para um conhecimento mais aprofundado no que toca a esta relação crítica, com atenção centrada nas forças económicas e sociais que potenciam os resultados das calamidades. Assim, em At Risk: Natural Hazards, People’s Vulnerability, and Disasters, Blaikie et al. sublinham que a vulnerabilidade social “involve a combinação de factores que determinam o grau em que a vida de alguém é posta em risco”. A este propósito, Zahran et al. precisam que “a vulnerabilidade social é definida pela posse de atributos sociais que aumentam a susceptibilidade às calamidades” e mostram a necessidade de estudar a fundo as dinâmicas sociais e políticas que produzem a desigualdade no acesso aos recurso naturais da natureza. Em Social vulnerability and the natural and built environment, estes autores identificam a questão saber porque certos grupos de pessoas são atirados para viver em zonas de risco e não dispõem dos recursos necessários para resistir e recuperar dos desastres ‘naturais’.

Nos últimos dez anos, esta literatura, e o impacto que alcançou nos media de todo o mundo, foi responsável por olharmos hoje o agravamento dos desastres meteorológicos com o olhar crítico de quem não pode separá-los da acção humana sobre a mudança climática e sobre o meio ambiente em geral. A literatura sobre deastres não-naturais centra-se precisamente na relação crítica entre degradação ambiental, e a consequente escassez de recursos materiais e sociais, e o impacto dos elementos, furacões, cheias, fogos florestais, seca e desertificação. É meu argumento que, também no caso de um terramoto, aquele que assolou o Haiti a 14 de Janeiro, por exemplo, é crítico sublinhar o que há de não-natural na catástrofe que provoca.

Que a terra trema, é natural; mas que atire a população para a anarquia e a des-civilização (nas palavras de Timothy Garton Ash) é mais o resultado de um certo grau de anarquia e des-civilização preexistentes, e da acção de forças económicas e sociais que agravam a vulnerabilidade das sociedades, do que dos desígnios insondáveis da natureza ou do equilíbrio das placas tecnónicas. Desta forma, toda a solidariedade mobilizada e o esforço da comunidade internacional na reconstrução do Haiti serão, em grande parte, desperdiçados se estes factores forem ignorados. A abordagem mais adequada para a reconstrução do Haiti é a que assenta na produção de segurança humana como mecanismo integral centrado na redução das vulnerabilidades sociais. A calamidade obrigou as populações de Port-au-Prince, da forma mais cruel, a reconhecerem essas vulnerabilidades e a desigualdade no acesso aos recursos. Face a isto, não é de estranhar que se tivesse assistido ao êxodo urbano, em direcção ao campo e a modos de vida mais sustentáveis e resilientes. 

Confrontada com a reconstrução do Haiti, a comunidade internacional solidária tem que reconhecer que a ajuda não é suficiente e que é nos modelos de governação local e global que é preciso encontrar as verdadeiras soluções.  A destruição da produção de arroz haitiano, nas décadas de 1980 e 1990, por via da liberalização da economia e consequente importação de arroz barato proveniente dos Estados Unidos, tem sido apontada como factor crucial para perceber as vulnerabilidades sociais no Haiti destroçado pelo terramoto (incluindo o êxodo rural em direcção a Port-au-Prince). O dado é crucial e deve servir para que as instituições internacionais, como o FMI, e os grandes actores comerciais, como os Estados Unidos, dêem mais atenção a uma abordagem integral da cooperação e do desenvolvimento, que privilegie a produção de segurança humana e o reforço da resiliência das populações e sociedades mais vulneráveis.



*Doctor en Relaciones Internacionales. 
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, 
Universidad Técnica de Lisboa.

Publicado

2010-07-15

Edição

Seção

Política internacional