A crise europeia vista da ‘periferia’ da Europa. (2da. Parte)
Resumo
A incredulidade europeia face à crise actual advém do facto de ela ser uma crise claramente produzida nos Estados Unidos da América, no coração do sistema capitalista norte-americano, que contagiou a Europa, onde as suas consequências são muito mais gravosas do que em qualquer outro ponto do planeta, ao ponto de estar a colocar em causa o modelo social europeu, a coesão social e o próprio futuro da integração regional no continente. Após esta crise – que, espante-se, Sarkozy descobriu que também é moral, após o descalabro francês no campeonato do mundo de futebol da África do Sul – o que ficará do estado de bem-estar e das leis de protecção do trabalho? O que ficará do estilo de vida europeu e da protecção da terceira idade? O que ficará da governação nacional e da democracia representativa parlamentar tradicional? Essas são as interrogações que todos colocam mas que ninguém se atreve a responder inequivocamente. Quando, dentro de uma década, as consequências mais profundas da crise – e dos seus remédios – puderem ser plenamente avaliadas e julgadas, que Europa terá sido entretanto produzida?
Durante algum tempo, persistiu a pretensão de que a crise europeia não passasse de uma tragédia grega, o descalabro típico das contas dos países periféricos, sempre olhados com desconfiança pelas elites políticas e económicas do Norte europeu, uma tropa fandanga que não se sabe governar e tem de ser salva recorrentemente da bancarrota e posta na ordem. Diz muito do espírito ‘europeu’ com que a crise foi abordada o cordão sanitário que depressa foi lançado en torno da Grécia. Na ânsia de que a situação do seu país fosse destacada da da Grécia pelas agências de notação e instituições internacionais, os dirigentes europeus – e pasme-se, a própria Comissão europeia – foram agravando a desconfiança face à Grécia, o que equivaleu a dizer sobre toda a Europa numa lógica de contágio. A resposta a nível europeu foi tão tardia, descoordenada e inepta que ajudou a produzir o fenómeno que mais temia e que pretendia evitar, isto é, o contágio das economias estruturalmente mais – e também das menos – frágeis a partir da Grécia. A sucessão de declarações desastradas dos comissários europeus e dirigentes nacionais assustados deslocou as atenções para Portugal e Espanha e obrigou – nunca melhor dito – os seus dirigentes a apresentarem planos de austeridade que lembram os anos 1980 e a intervenção do FMI. O recorte de privilégios sociais e das medidas anti-crise previstas no plano de estabilidade e crescimento é hoje combatido na rua pelos sindicatos em verdadeiro espírito de cruzada sendo que, por enquanto, se tem evitado o populismo mais básico e a retaliação sobre os estrangeiros. Pelo menos em Portugal, onde o discurso extremista e abertamente xenófobo não colhe e se mantém sem qualquer expressão política. Mas o resultado das recentes eleições na Hungria, Bélgica e Holanda não augura nada de bom, podendo as primeiras vítimas desta crise vir a ser a coesão social e a convivência multicultural. É significativo que em Espanha tenho vindo a ser necessário agendar e aprovar, nas últimas semanas, a proibição da burka nos espaços públicos. Não está aqui em causa o mérito da questão, com a qual concordo genericamente, mas sim o que diz do momento político que vivemos e da ansiedade que em tempos de insegurança e incerteza se transmuta em instinto defensivo e reage intempestivamente contra o que é exterior e não compreende. Não é avisado redefinir as regras de convivência no interior de uma sociedade em momentos tão tumultuados, tal como se provou não ter sido avisado redefinir a relação entre segurança e liberdade sob pressão da guerra contra o terrorismo. A mesma que Obama declarou entretanto extinta.
O diktat europeu a Portugal, Espanha e Grécia transforma-os nessa tropa fandanga da periferia da zona euro, muito por culpa própria – porque não perceberam as regras do jogo europeu, ou qual a margem de tolerância que tinham para o jogar – mas que também foi útil no enjeitar das responsabilidades dos definidores das regras do jogo. Passados alguns meses desde o desenrolar da tragédia grega e da aprovação das medidas de austeridade em Portugal e Espanha, os cortes orçamentais profundos já chegaram ao centro da Europa. Até 2013, a Alemanha obrigou-se a poupar 80 mil milhões de euros, a França 40 mil milhões, o Reino Unidos acaba de aprovar um pacote que pretende vir a reduzir o défice dos 10,1% de 2010 para 1,1% entre 2015 e 2016. Não nos enganemos; muita da despesa do estado europeu é inútil e perde-se no desperdício de uma máquina burocrática pouco habituada a prestar verdadeiras contas aos cidadãos. Outra parte importante da despesa é gasta na cooptação de funcionários públicos, um instrumento vital na estratégia de manutenção do poder por parte do partido político que o exerce. No desenrolar da crise, é preciso ser justo e não confundir os riscos de colapso do modelo social europeu com as oportunidades que se abrem de reforma profunda do estado. Eu diria que é um problema de metodologia e, estranhamente, de soberania. Se esta palavra ainda significa alguma coisa na Europa, significa certamente a capacidade de escolher a forma como se joga o jogo europeu. Aquilo que de mais revelador os acontecimentos últimos demonstraram foi a erosão adicional da soberania da Grécia, Portugal e a Espanha. Antes de mais, porque caíram no erro histórico de gastar muito mais do que a riqueza que são capazes de produzir e confiaram na quimera do dinheiro barato. Depois, e por causa do avolumar da dívida, perderam a capacidade para decidir quando e como pôr em prática o plano de ajustamento, o famoso plano de estabilidade e crescimento (PEC) anual que todos os países da zona euro são obrigados a apresentar à Comissão e que deve avaliza e aprovar. As pressões de Obama sobre Zapatero, e do Conselho Europeu de 6 de Maio sobre Zapatero e Sócrates mostraram a verdadeira natureza de uma decisão que ambos recusaram tomar até à última hora, por receio da inevitável degradação da sua base interna de apoio. As oposições, em ambos países, acusaram-nos de esconder durante meses a verdadeira dimensão do problema e de falta de coragem política para tomarem as medidas necessárias a tempo de evitar a imposição exterior. Finalmente, o compromisso em torno do mega fundo de resgate europeu, em troca dos planos de austeridade, acabou por transformou Grécia, Portugal e Espanha em países potencialmente resgatáveis, uma dúvida que feito subir os juros da dívida, alimentado a especulação dos mercados e reforçado as exigências dos que querem fazer aprovar a retirada do direito de voto nas instituições europeias aos países não cumpridores.
Dentro de uma década, as consequências para a integração europeia já poderão ser avaliadas e deverão ter passado por um reforço considerável da governação económica. Muitos vociferam que um espaço dotado de moeda única não pode sobreviver sem política económica integrada, e a fiscalização apertada dos orçamentos nacionais está na agenda das negociações. As reacções são diversas, e pese embora muitas vozes deplorem o défice de Europa e reclamem mais Europa contra a crise, a fiscalização do orçamento por Bruxelas é um aspecto simbolicamente muito marcante no caminho para a federação, pelo que muitos governantes se pronunciaram já contra esta opção. A questão é a de saber se têm de facto opção, ou se os discursos indignados contra a limitação da soberania orçamental se dirigem exclusivamente para as audiências internas. Por muito que se oponham, o facto é que esta crise da dívida que atravessa toda a Europa colocou nas mãos da Alemanha, e da senhora Merkel, o futuro da integração do continente. Para fazer aprovar no Parlamento alemão o mega plano de resgate europeu de 750 mil milhões de euros, a chanceler alemã exigiu não só planos de austeridade credíveis aos países mediterrânicos mas, mais ainda, um verdadeiro contrato europeu de controlo das despesas dos estados que deve avançar para estabelecer maior competência comunitária sobre a política orçamental. Para dar o exemplo, a Alemanha limitou constitucionalmente a despesa pública, opção polémica e que não tem sido seguida, por razões óbvias. Por seu turno, muitos consideram que é na própria política económica da Alemanha que reside a chave para o fim da crise, designadamente no estímulo da procura interna que se traduza na redução do largo excedente da balança comercial alemã. Num momento de falta de liquidez interna de muitos países, do sector público mas também do privado, e de crescimento muito débil, a Alemanha tem a obrigação de funcionar como locomotora da Europa. Como sublinhou há poucos dias Rafael Poch no artigo publicado no La Vanguardia de Barcelona, “Merkel en busca de un éxito egoísta”, a despesa pública alemã tem vindo a diminuir desde os 50% (do PIB) em 1990 aos 44% actuais (assim sendo, o défice orçamental neste momento deve-se afinal, não à despesa pública excessiva mas aos cortes sucessivos dos impostos). O retrocesso dos salários reais na Alemanha desde a adopção do euro contrasta com o aumento dos mesmos em Portugal, Espanha e Grécia ao longo do seu trajecto de integração europeia, o que tem causado desequilíbrios evidentes no seio da União. Assim, se a crise da Europa radica, em parte, no facto de Portugal, Espanha e Grécia se terem habituado a viver acima das suas possibilidades, também se deve ao facto de os alemães se terem eles mesmos obrigado a viver abaixo das suas possibilidades.
Vista da ‘periferia’ da Europa, esta crise causa muitas perplexidades. A primeira delas tem que ver com o papel da Alemanha no seio da União, mas prolonga a sua sombra sobre a lógica das regras, normas e mecanismos de decisão em vigor no interior da mesma. Tomando o exemplo de Portugal. A integração assinada fez há pouco 25 anos, em 1985, provocou sem dúvida a modernização material do país e o aumento do nível de vida médio da sua população (a riqueza subiu dos 55% da média europeia – UE12 – em 1985 para 75% em 2000). Com a crise, porém, tornou-se mais evidente a outra cara da moeda, aquela que mostra que o tecido produtivo foi desmantelado, sobretudo no sector agrícola. Nos dias de hoje, o país importa 70% do que come, em grande parte devido à política agrícola comum (PAC) que subsidiou o abandono das terras agrícolas e estimulou a importação dos grandes beneficiários da PAC, a França sobretudo. A integração numa união aduaneira acelerou a importação das máquinas alemãs que, de acordo com a lógica da livre competição do mercado, foi tida como peça fundamental da paz democrática europeia. Acresce que a moeda única retirou competitividade à economia portuguesa – pela subida dos preços, pelo alto valor da cotação do euro e pela fim da soberania cambial – restando ao país o endividamento para financiar a despesa. No sector privado, a lógica foi a mesma. A baixa constante das taxas de juro, desde meados dos anos 1990 até ao nível histórico de 1% actual, foi acompanhada de um política agressiva das instituições bancárias que concederam crédito em cima de crédito – para comprar casa, carro, electrodomésticos, férias, roupa – sem exigirem muitas garantias. A ordem foi a de comprar, os produtos alemães que construíram o excedente comercial da Alemanha e produziram o excedente financeiro aplicado na compra da dívida da Grécia, Espanha e Portugal, por exemplo. Para muitos, a exposição dos investidores alemães à dívida deste países foi mesmo o factor que determinou a resposta alemã à crise da dívida do Sul e o seu compromisso relutante com o mega fundo de resgate europeu. Como escreveu o conhecido historiador e publicista português Vasco Pulido Valente, num artigo do Público de Lisboa, depois de vinte anos de fotos de família e de cegarrega da União, o que é real são as grandes potências, e os seus interesses, sempre prontos a pôr na ordem os malcomportados e desordeiros do Sul que gastam mais do que produzem e não se sabem governar. As visões cínicas do fenómeno europeu e da integração vão certamente crescer, alimentadas pela crise; e o pior é que alguma verdade há por detrás delas.
*Doctor en Relaciones Internacionales.
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas,
Universidad Técnica de Lisboa.
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