Histórias do orteguismo

Autores

  • Marcos Farias Ferreira

Resumo

Nicarágua, capital Manágua; são nove horas da manhã de um dos últimos dias de Agosto, e acabo de entrar num microbus em direcção a Granada. Atravesso a cidade, a partir do campus da UCA (Universidad de América Central) em direcção ao sul, primeiro pela avenida Bolívar e, depois, pela Pista da UNAN (Universidad Nacional Autónoma de Nicaragua). Tenho sono, deixei Estelí – o histórico bastião sandinista – às cinco da manhã; pouco a pouco o microbus enche-se e eu tenho que me arranjar, no exíguo lugar, com as duas mochilas que constituem a minha bagagem. O motor despega e eu colo a cara ao vidro, disposto a nada perder desta cidade esquiva, de onde o turista comum foge como diabo da cruz. Vislumbro ao longe o perfil de Sandino, no cimo de uma colina, mas o que já antes me chama a atenção são os cartazes gigantescos com a esfinge de Daniel Ortega. A esfinge do comandante e a palavra de ordem: “Pueblo Presidente. Cumpliéndole a la Revolución”. Revolução estranha, esta; revolução que a Frente Sandinista (FSLN) tem a ilusão que dura há trinta anos, recuperada hoje da experiência dos anos oitenta, depois das eleições perdidas de 1990 e do regresso pactado com os liberais e a Igreja católica, após a eleições do final de 2006. Mas o recente regresso ao poder é tido pelo FSLN como algo bastante mais revolucionário do que a normal rotatividade de um regime democrático; é tido antes como a recuperação heróica do regime sandinista que tudo há-de transformar e que há-de conquistar as estruturas do estado, salvando a sociedade da tragédia do neoliberalismo. De dentro do oficialismo, o regresso do FSLN ao poder é visto como refundação do estado, reconstrução de um regime destinado a perpetuar-se e que dá cada vez mais mostras de rejeitar – ou de considerar abjecta – a própria ideia de rotatividade democrática. Nisto, o FSLN parece comungar do ideário chavista e do seu socialismo para o século xxi. E convence-me de que esse socialismo não passa do velho devaneio da personalização do poder e da perpetuação no poder.

Avanço pela Avenida Bolívar. Os gigantescos cartazes do oficialismo podem bem dar destaque ao “Pueblo Presidente”, como se o exercício do poder fosse de facto colectivo, como se a presença de Daniel Ortega à frente do país não passasse de um instrumento da mudança social inspirada no sandinismo histórico. Mas não é assim, e a prová-lo estão os desenvolvimentos políticos dos últimos meses na Nicarágua. Aliás, é de dentro do próprio movimento sandinista que vem a principal crítica ao regime; o sandinismo oficial ter-se-ia transformado, no entretanto, em orteguismo, um regime ditatorial assente no poder indiscutível do comandante, da sua mulher Rosario e de quem lhes está mais próximo, reforçado pela corrupção, pelo aliciamento e pelos pactos com os inimigos de outrora – alguns liberais e alguns sectores da Igreja católica. À minha frente, na Avenida Bolívar, um novo cartaz proclama: “Cumplirle al Pueblo es cumplirle a Dios”. Não deixo de sorrir, atónito. Aqui está, penso, a santa aliança do orteguismo coma religião e com Deus, tão criticada no seio do sandinismo e tão incómoda para os que vêem na actual lei do aborto (ou melhor, a completa ausência dela) um atentado à dignidade humana. Lembro-me do embaraço e da hesitação de Doris em Estelí, defensora impenitente do regime e de Ortega, face à proibição do aborto terapêutico. Para o defensor impenitente, é sempre possível recorrer à dialéctica, julgando esta lei um preço a pagar – transitório, é claro – pelo regresso ao poder e em nome de amanhãs que cantam. No entretanto, é o sistema de saúde e os seus profissionais que sofrem uma pressão crescente cada vez que a gravidez põe em risco a vida de uma mulher. 

Já na Pista da UNAN, reparo noutro cartaz cuja mensagem é apregoada em nome do “Pueblo Presidente”. Está montado no cimo do edifício do Ministério das Obras Públicas, à saída de Manágua, e juntamente com os cartazes pululam as bandeiras vermelhas e negras do FSLN. Reparo que em Estelí e Manágua – ao contrário de Granada – o azul e branco das cores nacionais quase desaparece em favor do vermelho e negro sandinista, com destaque para os edifícios públicos, a lembrar que é uma nova estrutura política a que o oficialismo pretende que ocupe o estado. A bandeira do FSLN ganhou tal estatuto na Nicarágua que se transformou mesmo em lembrança turística, qual ícone político ao lado das t-shirts do Che. Mas o grande paradoxo do “Pueblo Presidente”está na continuada tentativa de Daniel Ortega de forçar a alteração da constituição do país para continuar no poder. De acordo com o artigo 147 da actual lei fundamental, não é possível exercer a presidência em dois mandatos consecutivos, nem exercê-la mais que duas vezes no total. Ambos os preceitos excluem Daniel Ortega, que é o actual presidente e que já exerceu o cargo antes de 1990. Ao contrário do que sugerem os cartazes, aquilo que caracteriza o orteguismo é antes a criação de um “Presidente Pueblo”, de ambição totalitária, que se glorifica, que se perpetua no poder e que proclama que “o povo sou eu”. De resto, parece esta a ambição da alternativa bolivariana, mas não só. Chávez, Correa e Zelaya, mas também Uribe, todos caíram na tentação de se considerarem indispensáveis à salvação das suas pátrias, abrindo uma vaga de insegurança constitucional e violência nas sociedades a que presidem. Dias antes, ainda em Estelí, tinha-me enganado na paragem do autocarro e deixei para trás La Thompson. Alguns quilómetros à frente, quando o motorista me deixou no meio do nada, olhei para o outro lado da Panamericana e lá estava a tabuleta que dizia “La Campiña”, o hotel que serviu de base a Mel Zelaya na primeira fase da sua tentativa desesperada de regressar ao poder no país catracho. 

A insegurança constitucional imposta pelo orteguismo é directamente responsável pelo aumento da violência política que se vive na Nicarágua. De um certo modo, a coacção crescente sobre todo e qualquer movimento de oposição cívica também é a antecipação das reacções que possam vir a surgir no momento crucial da negociação (ou da barganha) parlamentar sobre a possibilidade da reeleição. De uma forma mais directa, isto significa que o regime – pois a violência é promovida de dentro do regime – se procura defender de qualquer veleidade anti-revolucionária. Sobretudo depois da crise hondurenha. O ambiente é cada vez mais tenso, sobretudo em Manágua, onde as paredes e muros se encontram literalmente inundados pelas palavras de ordem sandinistas, em especial desde Julho e das comemorações dos trinta anos da revolução. Comprovo o facto de dentro do microbus, onde continuo com a cara colada ao vidro e a cidade me vai passando diante dos olhos: “Viva la Revolución”; “Viva Daniel”; “Viva la Juventud Sandinista”; “Viva el 19 de julio”; “Viva el Comandante”; “Viva la roja y negra”. O oficialismo procura ocupar todo o espaço discursivo disponível na cidade, mesmo para lá do pretenso assédio aos meios de comunicação. Nada sobra, consciente de que a vitória sobre os traidores neoliberais – é esta a linguagem utilizada pelo canal de televisão sandinista – se joga em primeiro lugar ali, nas paredes e muros de Manágua. Mas vai mais além; salta deles e ganha as ruas e rotundas no confronto físico com entre os seus defensores e todo aquele que se manifesta contra. Neste mês de Agosto, tornaram-se comuns as agressões físicas a manifestantes anónimos, como os elementos da coordenadora cívica que foram atacados à paulada e à pedrada, enquanto se manifestavam diante da catedral de Manágua. Perante a impassibilidade das forças de segurança. O Nuevo Diarionoticiou, com nomes e fotografias, que os atacantes eram membros da juventude sandinista e agiam de forma organizada, um procedimento a que, pelos mesmos dias, recorreu o chavismo. Lembro-me também de ter lido, durante o mês que passei em Estelí, relatos que descreviam o assédio do oficialismo aos funcionários públicos ao abrigo de acções de consciencialização democrática, em pleno horário de trabalho. Tratar-se-ia de abnegadas acções para explicar o funcionamento do estado e o sentido das reformas constitucionais propostas pelo FSLN. Não pude deixar de pensar num cerco que se aperta, onde os campos de batalha se multiplicam e a vitória total sobre a sociedade é o único objectivo que importa. Não posso deixar de pensar que a guerra civil na Nicarágua terminou há apenas trinta anos e que as feridas quase não tiveram tempo para sarar. Não posso deixar de pensar nas histórias de guerra e resistência que ouvi da boca de Edna, em Estelí, e de como a sua família assistiu à destruição da cidade, por três vezes, entre 1978 e 1979. Não posso deixar de pensar nas histórias de uma geração mutilada pela guerra.

O microbus prossegue pela Pista da UNAN e o cobrador vai gritando, em cada nova paragem, “¡Granada, Granada, Granada; vamos a Granada!” Movo o braço adormecido que descansa por cima das mochilas e procuro esgueirá-lo para dentro do bolso dos calções, onde guardei a nota de vinte córdobas suficiente para pagar a viagem. De repente, no meio da batalha discursiva que ocupa as paredes de Manágua, entrevejo uns rabiscos que não pretendem ser uma ode ao sandinismo e ao FSLN; antes, uma chamada de atenção à deriva revolucionária e às suas contradições. Num espaço vazio destinado a cartazes publicitários, alguém escreveu em letras pretas e maiúsculas: “Donde hay poder hay resistencia”., e assinou por baixo: M. Foucault. Assalta-me a solidão desse aviso num meio de um oceano de vivas à revolução. E a coragem de alguém que sabe mais, que intui para lá da gritaria da mole humana e não se deixa intimidar por ela. Onde há poder há resistência, avisa o escritor anónimo, nem que seja a sua própria, do alto de um espaço publicitário, por enquanto vazio. Avisa que é escusada essa fúria revolucionária dos que teimam em rabiscar a cidade e esgotar o campo discursivo. Onde há poder há resistência e pronto; é preciso viver com ela, reconhecê-la e conceder-lhe espaço. Onde há poder há resistência, qualquer que seja o poder e a sua filiação, por muito revolucionário que seja, por muito progressista, por muito popular que se proclame. Quão longa e bem conhecida é já a história do processo de institucionalização das revoluções. Mas no meio da vozearia revolucionária da Pista da UNAN, a citação de Foucault não é um mero aviso; também é um apelo solitário e desesperado ao regresso da normalidade da vida, com as suas contradições, paradoxos e tensões naturais que o poder político sempre tem a veleidade de querer limitar ou suprimir. A capital vai ficando para trás e o campo já se insinua nos aglomerados de casas cada vez mais dispersos. Pouco depois estaremos em Masaya, e depois em Granada. Há gente que entra e que sai do microbus quase em andamento, em cada rotunda, em cada poste da estrada, na volta de cada cruzamento. E o cobrador lá vai apregoando, com a sua voz vigorosa e eficaz, “¡Granada, Granada, Granada; vamos a Granada!”



*Doctor en Relaciones Internacionales. 
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. 
Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.

Publicado

2009-09-17

Edição

Seção

Política internacional