O Momento Topolánek

Autores

  • Marcos Farias Ferreira

Resumo

Num futuro mais ou menos distante, a presente conjuntura europeia poderá ficar conhecida como ‘momento Topolánek’, nome do primeiro-ministro checo e presidente em exercício do Conselho Europeu que acaba de se demitir na sequência da aprovação de uma moção de censura no parlamento de Praga. No sentido que lhe quero dar aqui, o momento Topolánek representa o agravamento de todas as contradições internas da União Europeia – e é mesmo a sua metáfora – ao mesmo tempo que se torna imprevisível a deriva da crise económica e financeira. Por outro lado, e o paradoxo é apenas aparente, este mesmo agravamento poderá agudizar a necessidade de avançar o mais rapidamente possível para o Tratado de Lisboa e as suas inovações institucionais no funcionamento da União Europeia. 

A presidência checa da União Europeia tem sido pontuada por inúmeras dificuldades, a menor das quais não sendo a gestão da pretensão de Nicolas Sarkozy de alargar a influência do seu consulado para lá dos seis meses da presidência francesa que precedeu a actual presidência checa. No primeiro dia do novo ano, a Rússia cortava o abastecimento de gás natural à Ucrânia, acabando por provocar dificuldades energéticas em toda a Europa Central e de Leste, no início de um inverno rigoroso. Países como a Bulgária, a Sérvia, a Bósnia, a República Checa, a Hungria, a Eslováquia e a Roménia encontram-se quase completamente dependentes do abastecimento via Ucrânia e ficaram assim reféns da guerra energética entre as duas companhias estatais e monopolistas, a russa Gazprom e a ucraniana Naftogaz. A Gazprom controla um terço das reservas mundiais de gás natural e é responsável por um quarto do abastecimento à Europa, o que a torna um actor crucial no complexo processo de produção de segurança energética europeia. A Gazprom está actualmente a desenvolver dois grandes projectos empresariais para ultrapassar aquilo que vê como o problema do abastecimento à Europa via Ucrânia; o North Stream, através do Mar Báltico, onde opera em parceria com as alemãs E.ON Rhurgas e Wintershall e a holandesa Gasunie, e o South Stream,através do Mar Báltico, e onde conta com a pareceria da italiana ENI. Contudo, as desconfianças europeias face à Gazprom são enormes, e a liberalização em curso do mercado europeu da energia prevê uma espécie de protecção contra companhias extra-europeias que não sigam regras transparentes, impedindo-as de adquirir o controlo maioritário sobre as redes europeias de abastecimento de energia. A Rússia queixa-se de um proteccionismo europeu injustificável enquanto Barroso, o presidente da Comissão Europeia, garante que se trata apenas de livre competição, da necessidade de proteger o mercado interno europeu de comportamentos não-competitivos. Da estratégia energética europeia consta também o desenvolvimento de um gasoduto próprio que abasteça a União Europeia directamente de gás proveniente da Ásia Central e da região do Cáspio através da Turquia. Ainda assim, só terá capacidade para garantir 5% das necessidades europeias, o que faz da Gazprom um parceiro inevitável no futuro próximo. Há poucos dias, um acordo assinado entre a União Europeia e Ucrânia para a reabilitação dos seus gasodutos provocou fortes reacções de Putin que avisou que, se os interesses russos não forem tomados em conta, a Rússia terá que reconsiderar as relações com os seus vizinhos.    

A guerra do gás, a ofensiva israelita a Gaza e a resposta à crise global marcaram a passagem de testemunho da presidência francesa para a checa, acabando por mostrar à saciedade os problemas da falta de coordenação política neste tipo de solução rotativa para a direcção estratégica da União Europeia. Coube ainda a Mirek Topolánek e à presidência checa gerir as pretensões (talvez) legítimas de Sarkozy de estender a influência que exerceu nos seis meses anteriores no sentido de resolver os problemas do momento, pelo que o choque de declarações entre os dois se tornou constante e desembocou na crítica de Topolánek ao proteccionismo francês. Numa entrevista à televisão francesa a 4 de Fevereiro, Sarkozy referiu que seria irresponsável produzir automóveis para o mercado francês nas fábricas da República Checa, com o que apontava directamente o dedo à produção de automóveis do grupo Citroën Peugeot na fábrica de Kolin. As declarações de repúdio ao proteccionismo por parte dos dirigentes europeus – também por parte de Nicolas Sarkozy – têm-se sucedido desde então, mas a desconfiança tardará a desaparecer e as tentações proteccionistas continuarão a surgir. O diário Le Monde (25-03-09) destaca que a presidência checa está marcada pela fraqueza do seu governo desde o primeiro dia e que as críticas se foram avolumando quando à capacidade de gestão da crise interna e dos problemas internacionais, sendo um sinal de tudo isso a marginalização de Topolánek por Sarkozy aquando da ofensiva israelita a Gaza. Como escreve Philippe Ricard, a demissão de Topolánek promete deteriorar a autoridade e a credibilidade de uma Europa que se afunda na recessão e procura fazer ouvir a sua voz na refundação do sistema financeiro global. 

Por outro lado, a situação económica e financeira na Europa Central e de Leste (mas não só) degrada-se de dia para dia e ameaça trazer novos problemas ao sistema financeiro europeu. Depois da catástrofe islandesa, o FMI já interveio para ajudar a Hungria, a Letónia e a Roménia (e também a Ucrânia) e o contágio pode alastrar para ocidente. O que é mais, a degradação das finanças públicas na Grécia, Irlanda, Áustria e Itália, a par com as dificuldades no sistema financeiro destes países, tem aumentado o nervosismo dos investidores e a especulação em torno da possibilidade de insolvência (default). Por sua vez, a agência de rating Standard & Poor’s atirou literalmente para o caixote do lixo dos produtos financeiros as obrigações emitidas pelos governos da Letónia e da Roménia. Depois de anos de euforia com a recuperação e a transição para o mercado, as dificuldades económicas e financeiras são indesmentíveis por todo o centro e leste da Europa: o colapso das moedas nacionais, como o forint húngaro, a inversão dos fluxos financeiros e a especulação dos mercados em torno da possibilidade de insolvência (default) de alguns países. A este propósito, a revista Newsweek (28-02-09) sublinha que as dificuldades começaram como no caso da crise do subprime nos Estados Unidos, com milhões em crédito de alto risco, mas de grande rendibilidade, concedidos pelos bancos da Europa Ocidental, alemães e austríacos, aos mercados do leste. De acordo com Stefan Theil e William Underhill, existe mesmo algum paralelo com o que aconteceu em 1931, quando o colapso da instituição financeira de Viena, o Creditanstalt, claramente subcapitalizada, provocou uma cadeia de falências em instituições bancárias à escala mundial. De acordo com os mesmos autores, esta crise não deverá assumir os contornos da crise do subprime nem conduzir a uma nova grande Depressão, mas tem todas as características do tipo de crise que afecta os mercados emergentes e que até agora tinha estado confinado à América Latina e ao Sudeste asiático. 

Procurando evitar o pânico dos mercados e reduzir o impacto do que entendem ser o alarmismo injustificado do governo austríaco – preocupado com o futuro do seu sistema bancário – as entidades bancárias reguladoras da Bulgária, Roménia, Eslováquia, Polónia e República Checa reuniram-se a 4 de Maio. O comunicado que resultou da reunião é uma espécie de declaração de confiança no sistema bancário destes países que pretendem isolar casos específicos de dificuldades e evitar uma intervenção da União Europeia em larga escala justificada pela suposta precariedade no leste. Sublinha a mesma que cada um dos países da Europa Central e de Leste tem a sua situação económica e financeira específica e que esses países não constituem uma região homogénea; que há que distinguir os que são países-membros da União Europeia dos que o não são e clarificar questões específicas referentes a países específicos ou grupos bancários específicos. As autoridades húngaras não foram convidadas para a reunião – o caso húngaro sendo precisamente um dos que era preciso isolar – e minutos depois da declaração conjunta o forint caía para mínimos históricos face ao euro e para um mínimo de 6 anos face ao dólar. O regulador húngaro apressar-se-ia a assinar a declaração mas o dano estava feito. Além do mais, este isolamento da Hungria não garante que o contágio não aconteça por outra via, sendo que as dificuldades podem advir da extrema dependência das exportações para o ocidente, como no caso da República Checa. Em termos políticos, a factura também é pesada e o primeiro-ministro húngaro, Ferenc Gyurcsany, não resistiu ao agravamento da grave recessão que se arrasta há meses. Entretanto, o FMI adverte que a situação é extremamente difícil e inquietante e que a crise pode provocar agitação social e ameaças à democracia. A situação actual é mesmo descrita pelo diário El País (25-03-09) como um tsunami que varre a Europa de Leste.

Discursando no Parlamento Europeu, no dia seguinte à aprovação da moção de censura, Topolánek assegurou perante os eurodeputados que o seu país assegurará a presidência da União Europeia até ao final, em Junho. Contudo, a sensação de quebra de autoridade na direcção política da União Europeia após a presidência Sarkozy é indisfarçável e vários eurodeputados criticaram, por exemplo, o cancelamento de uma cimeira prevista para discutir questões relativas à coordenação das políticas de emprego, o que demonstra a falta de orientação estratégica na luta contra crise. À parte o problema relativo à fragilidade interna da República Checa e ao papel de negociador e mediador na presidência da União Europeia, também é o Tratado de Lisboa que está em causa no momento Topolánek, o que faz dele um teste crucial para o futuro próximo da União. Já é sintomático que a República Checa se tenha envolvido em questiúnculas internas acerca do processo legislativo conducente à ratificação do Tratado, e é neste momento o único país sem decisão tomada relativamente ao mesmo. Com a queda de Topolánek, desaparece a única garantia de que o Partido Cívico – partido de centro-direita e eurocéptico – votasse a favor do Tratado de Lisboa e de que este pudesse ser ratificado pelo Senado checo. A tensão está garantida e o nervosismo institucional na União Europeia deverá agravar-se. Por um lado, os que pretendem utilizar a crise para pôr de lado o Tratado de Lisboa; por outro, os que apontam a crise e as dificuldades da presidência checa como a maior evidência da necessidade das reformas institucionais introduzidas pelo mesmo, designadamente o fim das presidências rotativas e a criação de um presidente permanente da União eleito para mandatos de dois anos e meio e com competências de representação no âmbito da política externa e de segurança comum. 

O momento Topolánek é especialmente desconcertante nas vésperas da cimeira do G-20 em Londres, da cimeira dos 60 anos da OTAN em Estrasburgo e da cimeira entre a União Europeia e os Estados Unidos em Praga; tudo ocasiões cruciais no debate sobre a construção de uma governação política, económica e financeira global e em que, mais do que nunca, a Europa precisará de uma voz que dê expressão à sua visão do mundo. Muitos se perguntarão por quanto mais tempo a Europa se pode dar ao luxo de passar por momentos Topolánek.



  *Doctor en Relaciones Internacionales. 
Profesor del Instituto de Ciencias Sociales y Políticas, Universidad Técnica de Lisboa. 
Profesor Invitado del Instituto de Estudios Políticos, Universidad Católica Portuguesa.

Publicado

2009-03-26

Edição

Seção

Política internacional